Lembro-me que era muito alto e não era impressão minha: a sua figura destaca-se nas fotografias com os amigos.
Os olhos eram verdes, de um verde impressionante, muito claro, mas muito denso.
Lembro-me da figura dele. Sei muito pouco sobre ele.
Toda a vida procurei saber mais, mas agora a maior parte dos amigos já morreu e a minha fonte de informação vai acabar por esgotar-se. Não sei a quem perguntar mais.
Sei que gostava de pescar e de caçar. Adorava cães e chegou a ter quinze.
Dizem que tinha um senso de justiça que usava de uma forma impulsiva e tratava qualquer situação que lhe ferisse a honra ou a honra de um amigo sem qualquer medo e na hora própria.
Era respeitado e temido. Não calava as suas opiniões. Foi perseguido por isso; na altura não se podia pôr em causa a situação politica em que se vivia.
Sei que ele e um grupo de amigos viveram dias escondidos no cemitério de cá. Depois, o dono de um solar que ainda existe, cedeu-lhes os túneis para se esconderem. Estiveram lá todos durante uns tempos e ele era o cozinheiro – dizem que fazia uns belíssimos ovos estrelados. Depois fugiram para Espanha e ele acabou por ser preso.
Julgo que por ter pertencido a um milícia que expulsou os camisas negras de cá. Ele tinha uma rua só por conta dele. Foi o que me contou um amigo que entretanto morreu.
Gostava de cozinhar. Ás vezes surpreendia a minha mãe com belíssimos banquetes que lhe preparava.
Não era romântico e não sabia mostrar sentimentos desses. Mas escrevia poemas. Eu já tive dois, mas perdi-os com as mudanças de casa. Um era para o rio Lima, outro era para ela.
Adorava ler e lia tudo o que podia sobre os assuntos que lhe interessavam. De tal forma que alguns advogados o tratavam por colega e engenheiros também. Tinha a 4ª classe.
Tenho uma foto dele no meu quarto. Usava chapéu e um lencinho a aparecer no bolso do blaser. E os olhos verdes.
Ela passava os lenços dele e eu ficava de pé à espera. Quando tinha um monte grande, pegava neles quentinhos e levava-os junto à cara para lhe entregar. Ele estava sentado numa cadeira a olhar pela janela. Muito ausente.
Eu ia passear com ele e levava o meu triciclo. As pernas dele davam uns passos tão grandes que eu tinha que pedalar com toda a minha energia. Era muito alto.
Lembro-me também do hospital, mas não vou falar nisso.
Sei que ele foi embora na idade do complexo de Édipo. Li algures que as crianças não entendem a morte. Lembro-me que não sabia o que era. Diz-se que as crianças entendem a morte como abandono, rejeição. Julgo que demorei a perceber que não foi isso que aconteceu e que ele não me abandonou.
Que gostou muito de mim e achava que eu tinha umas orelhas muito bonitas : pedia sempre para me fazerem totós.
O que eu sei sobre ele cabe neste texto. Há outras coisas que sei, porque as encontro em mim.
Sinto que esta impressão no início da minha vida marcou a fogo a minha personalidade. Ainda hoje quando adoro alguém, fujo ao menor sinal de rejeição para não enfrentar nunca mais uma ausência.
Um lugar para brincar com palavras e ideias. Para partilhar. Para nunca esquecermos quem somos. O que sentimos. Para minimizar a mágoa de não podermos estar em vários sítios ao mesmo tempo. A corrida apressada da vida. A impossibilidade de conhecer tudo o que existe. A saudade já.