quinta-feira, dezembro 29, 2005

Votos




Quando era pequena não gostava de peixe, de sopa, de arroz de feijão, arroz de polvo, arroz de tomate... Com o tempo aprendi a gostar.

Quando fazia votos, não entendia porque é que a saúde vinha em primeiro lugar - embora achasse sensato que assim fosse.

Pois bem, venho hoje com toda a minha força fazer os meus votos para 2006.

Peço que ninguém dos que me são queridos seja inserido novamente nas estatísticas da incidência do cancro de estomâgo nos países do sul. Peço também que eu própria não volte a engrossar a lista de vítimas de atropelamento.

Peço que o espaço de amor incondicional que são os meus dias me proteja sempre de tudo o que me ultrapassa.

Subitamente aprendi na pele o que remotamente me parecia sensato: nos votos de ano novo o que se pede com mais força é saúde e de seguida amor, porque o dinheiro de nada vale quando nos confrontamos com a nossa imensa fragilidade.

Quero também agradecer o amor anónimo e inconsciente que muitas vezes me deram este ano, sem saberem sequer o que se passava do lado de cá.

Bom 2006 para todos com esta ordem de prioridades. Infinitamente obrigada.



Foto de João Coutinho

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Natal



A poesia é a minha salvação. Afasta-me das coisas que me rodeiam, para me aproximar delas mais profundamente.

Tonino Guerra em entrevista a Carlos Vaz Marques, ontem na TSF em Pessoal e Transmissível


Também sobre o Natal, sinto a necessidade de me afastar do que me rodeia estes dias, para me aproximar do tempo em que na lareira da cozinha brilhava uma grande fogueira, cheirava a canela no ar e ouvia-se cantar as janeiras na torre da igreja. Não havia presentes, mas estávamos todos.


Desejo a vocês este Natal, sentido profundamente.


Foto de João Coutinho.

domingo, dezembro 18, 2005

Uma carta



Queria que soubesses que morei em tua casa. Andei contigo na escola primária e saí muitas vezes com os teus sapatos. Sei bem dos passos inseguros. Sei do espanto e do mundo silencioso no canto da sala. Lembro-me do fascínio pelas casas grandes e pelos segredos escondidos dentro dos armários.

Colei muitas vezes o nariz ao vidro da tua janela e pensei que também gostaria de brincar na rua. Mas tudo era demasiado longe por detrás daquela porta.

Se hoje existe um lugar onde nenhuma linguagem se fala e se nesse lugar nos encontramos inevitavelmente é porque percorremos longas distâncias lado a lado. Não diria mão na mão, porque a mão era só uma.



Foto de João Coutinho

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Solitas, solitatis


A Saudade é um sentimento universal; mas, só na alma lusitana, atinge as alturas supremas da Poesia -, contendo uma concepção da vida e da existência.

Pascoaes, T. (1986). Da saudade. Em A. Botelho & A.B. Teixeira (Orgs.). Filosofia da Saudade (p.124-144). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (Original publicado em 1952).


Habitados a tal ponto pela saudade, os portugueses renunciaram a defini-la. Da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do seu sentimento da existência, a ponto de a transformarem num ‘mito’. É essa mitificação de um sentimento universal que dá à estranha melancolia sem tragédia que é o seu verdadeiro conteúdo cultural, e faz dela o brasão da sensibilidade portuguesa.

Lourenço, E. (1999). Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras.


Foto de João Coutinho

sexta-feira, dezembro 02, 2005

As palavras antes das palavras


Saudade - s.f. desiderium, dolor; ter saudades, desiderio teneri, desiderio flagrare, desiderio confici; ter saudades de alguém, desiderare aliquem, ex desiderio alicius laborare.

Dicionário Português-Latim/Latim-Português, Porto, Porto Editora, 2005


Foto de João Coutinho

quarta-feira, novembro 23, 2005

Negro


Retirei do cenário a cor
Vagueei pelas cidades cinzentas

Olhei as minhas mãos
Vi-as negras de pó

Ouvi ao longe um ruído mudo
Tão longe que quase não era

É que me disseram que a cor não existe
Que tudo é plano sem forma nem tons

Que afinal vivemos numa ilusão tão grande
Que nunca chegamos a saber quem somos.



Foto de João Coutinho

quinta-feira, novembro 17, 2005

Branco


Queria adormecer no baloiço do jardim
Numa primavera antiga a cheirar a flores

Como na canção do Godinho
Abrir a janela e voar

Sorrir devagarinho

Como se tudo fosse redondo suave e branco



Foto de João Coutinho

quinta-feira, novembro 10, 2005

Coisas da avó


A minha avó materna tinha uma peculiar actividade: escrevia cartas.

A maior parte eram encomenda de raparigas que tinham os namorados " lá fora".
As cartas eram de tal forma intensas e apaixonadas que desta correspondência resultaram muitos casamentos.

Imagino a estranheza daqueles homens quando nunca chegaram a encontrar a mulher que as escrevia
.


Foto de João Coutinho

domingo, novembro 06, 2005

Histórias da casa antiga ou coisas de formigas


Quanto cresceste? A que distância estás daquela menina?

Não te lembras bem e muitas vezes há um momento em que vais para lá. Viajas. Vês-te outra vez, deitada de barriga no chão encerado da sala, a olhar atentamente os carreiros de formigas.

A sonhar sobre o mundo paralelo que idealizaste. As formigas e as suas vidas. Onde vão em carreiros tão alinhados? Como conseguem carregar uma carcaça de mosca gigantesca? Porque se cumprimentam quando se encontram de frente?

E se puser aqui o lápis e interromper o trajecto?

Lembras-te? Eram assim algumas brincadeiras dos miúdos sozinhos.



Foto de João Coutinho

sexta-feira, outubro 28, 2005

Histórias de livros III


Também me falaram de um homem que faz corredores de livros em casa. Já não usa estantes. Os que gosta mais estão em corredores formados à volta da sua cama.

Quem me contou esta história foi um amigo que sabe centenas de poemas par coeur. Ele próprio vive rodeado de livros. Aqui.




Obrigada, Maat:


as estantes são para estar.
não para ler.
há um homem que aboliu as estantes de sua casa
e concordo com ele.
não tenho estantes em minha casa.

os livros
têm pedras e veias por dentro
correm pelos corredores indo desaguar a diversas salas.

por vezes dão filhos
e brincam com as folhas das árvores.


há os que vão ter comigo
ao meu quarto
crescente em círculo
em dias de tristeza e frio.

outros dão pelo nome de vento e água
arrombando as portas das janelas fechadas.


os livros são como rios.




domingo é um dia em que eles todos juntos
correm para o Nada.



Foto de João Coutinho

domingo, outubro 23, 2005

Histórias de livros II


Um dia um homem disse-nos - ao passar ao lado da nossa mesa no restaurante - que achava as pessoas monótonas e previsíveis.

Já não perdia tempo a conversar. Cada pessoa encaixava-se perfeitamente numa personagem de um livro qualquer que já lera.



Foto de João Coutinho

quarta-feira, outubro 19, 2005

Histórias de livros I


Há uns anos morreu um tio meu que nunca cheguei a conhecer. Não sei quase nada sobre ele. De tudo o que me disseram registei apenas uma coisa: adorava ler.

Na altura em que morreu morava numa pensão. Tinha enchido de tal forma a casa de livros que não sobrara lugar para ele.



Foto de João Coutinho

sexta-feira, outubro 14, 2005

O pesadelo


De que me falas eu não te ouço
Ontem sonhei que estava em nossa casa
Acordei sozinha no meio da rua

Não sei das portas as janelas não abrem
Gostava de sair daqui não sei andar

Perguntei ás pessoas como se respira
Ninguém sabe a resposta ninguém entende

Depois acordei outra vez e outra e outra
E não sei da casa e não te vejo

Onde estás onde estás onde estás

Estou acordada ou sonho ainda?



Foto de João Coutinho

quarta-feira, outubro 05, 2005

Do tempo e das viagens


Sento-me do lado avesso do relógio
Quero olhar com atenção despida de horas
É importante passear pelos dias fora
Pedir a Lorca o ladrão do tempo
E subitamente ver as máquinas
a andar para trás
Queria ir ao passado ao futuro ir ao longe
Sem este cordel que me prende o pulso neste dia




As formas circulares dos mostradores dos relógios, por exemplo, geram a ilusão de que as horas regressam sempre e isso nunca acontece. Se calhar, devíamos imaginá-los em forma de espiral.

Laurie Anderson, Anéis de Fumo, Assírio e Alvim, 1997 ( p.37 )


Foto de João Coutinho

quinta-feira, setembro 29, 2005

Palavras doutros - Dúvida



Que guardarão de mim as casas que
deixei? O pó sobre o meu nome?




Pedreira, Maria do Rosário, Nenhum Nome Depois, Lx, Gótica, 2004 (p.39)


Foto de João Coutinho

quarta-feira, setembro 21, 2005

Posso falar-te?


Os copos em cima da noite de verão
As gargalhadas as conversas sem destino
O deserto quente do resto da vida
Uns olhos com lágrimas
O abandono
O cão vadio que dorme no jardim

E nenhum de nós sabia
O que fazer quando uma pessoa abandonada
Talvez não tivesse onde dormir

Uma pessoa abandonada
Uma pessoa abandonada
Uma pessoa abandonada

O deserto árido do resto da vida
O grito agudo de dizer eu ainda vejo

Que faço agora?

O mundo é livre para que te fale?



Foto de João Coutinho

quarta-feira, setembro 07, 2005

Palavras doutros e um beijo


agora eu era linda outra vez
e tu existias e merecíamos
noite inteira um tão grande
amor

agora tu eras como o tempo
despido dos dias, por fim
vulnerável e nu, e eu
era por ti adentro eternamente

lentamente
como só lentamente
se deve morrer de amor


Mãe, Valter Hugo, Anos 90 e Agora, Quasi ( p.269 )


Foto de João Coutinho

sexta-feira, setembro 02, 2005

Campus Stellae


As recordações guardam-se em gavetas. Algumas não têm fechadura e abrem-se sempre que se precisa. Outras têm.

Estas últimas abrem-se quando menos se espera, as chaves são variadas e podem surpreender-nos em qualquer lugar. Podem ser um cheiro, uma música, uma frase solta, uma determinada luminosidade no dia…

Tinham passado dois anos e nunca pensei que a força desta memória me faria crescer um nó na garganta. Voltei ao campo da estrela e tive vontade de chorar outra vez.



A Lenda


Foto de João Coutinho

terça-feira, agosto 23, 2005

Cem nomes


Eu sou a que não sabe os nomes das coisas

Vou a lugares onde nada se chama
Inclino-me na terra
E suavemente escuto os corações a bater

Um dia perguntei a um velho na rua
Onde era a minha casa
Disse-me um nome que não sei pronunciar

A porta está gravada a sangue num coração

É lá que eu moro.



Foto de João Coutinho

sexta-feira, agosto 19, 2005

Finisterrae


Quando era pequena pensava que a terra era quadrada e que, uma vez chegados ao final, nos poderíamos debruçar e ver as estrelas.

Pensava na altura que isso seria algures na zona de uma estrada que eu vi uma vez e que terminava abruptamente no início de um monte.

Mais tarde soube que havia um lugar chamado Finisterrae e que ao longo dos séculos foi um lugar sagrado precisamente por se acreditar que aí era o fim do mundo.

A diferença deste para o “meu” fim do mundo é que aqui a terra termina no mar. E neste lugar o mar é mágico. Como se todas as recordações continuassem presentes. As minhas e as de todos que lá foram à procura de estrelas.



Foto de João Coutinho

quinta-feira, julho 21, 2005

Coisas importantes e férias também



- As flores mais bonitas que já recebi

- O presente de anos de uma amiga

- O fim de tarde em Ponte de Lima

- As fotos do João Coutinho

- As férias


Volto aqui na última semana de Agosto.

sábado, julho 16, 2005

Devolução


Não sinto culpa por não saber o nome das flores
Foram dúvidas o que sempre tive,

e as dores não admitem nomes.
Uma vez não acreditamos já tudo ter sido dito.
Espera-se numa palavra a devolução do amor.


De Paulo José Miranda, in Anos 90 e Agora, Quasi ( p. 223 )


Foto de João Coutinho

quarta-feira, julho 06, 2005

Brincadeiras


Brincavam as palavras como crianças
Riam as palavras algumas inventadas
Outras escondiam-se traquinas
E mostravam-se a espreitar atrás dos muros

As palavras pequeninas e as proibidas
Juntavam-se no jardim cheio de sombras
E faziam o sol tímido aparecer por entre as folhas

E o vento com doçura abraçava-as e levava-as
A rir pela manhã fora.

Os olhos sorriam em silêncio.



Foto de João Coutinho

quinta-feira, junho 30, 2005

"Donne-moi la photo"



Quand la Land Rover disparut en soulevant un nuage de poussière, Idriss n'était tout à fait le même homme. Il n'y avait a Tabelbala qu'une seule photographie. D'abord parce que les oasiens sont trop pauvres pour se soucier de photographie. Ensuite parce que l'image est redoutée par ces berbères musulmans. Ils lui prêtent un pouvoir maléfique; ils pensent qu'elle matérialise en quelque sorte le mauvais oeil.

Tournier, Michel, La Goutte D'Or, Paris, Gallimard, 1986 (pp 14/15)


Na altura não conhecia estas crenças, mas o efeito de desespero era o mesmo: não suportava que me fotografassem. Pouco tempo depois aprendi a juntar as letras e comecei a escrever poemas.

Se, em algumas culturas, as pessoas acreditam que a reprodução da imagem lhes rouba a alma, eu acreditei sempre que a palavra escrita preserva a minha.


Há um ano atrás comecei a escrever aqui.

segunda-feira, junho 20, 2005

Um


Àquela hora não sabia ainda se virias
se os atrasos do tempo sempre a horas
iriam enferrujar as máquinas dos relógios

Olhei muitas vezes a torre da igreja
outras nem olhei e o sino tocou
na trémula névoa do calor da estrada

As mãos unidas a dada altura
pareciam uma

Uma a pele e o sangue um
como também os pensamentos
que escapavam na direcção
que os teus olhos tomavam
e encontravam os meus
ali acolá pousados
nas mesmas coisas que procuravas

Esperavam-te para pousar a seguir
com os teus noutro lugar



Foto de João Coutinho

segunda-feira, junho 13, 2005

O voo


Levar-te à boca
Beber a água
mais funda do teu ser

Se a luz é tanta,
Como se pode morrer?


Eugénio de Andrade

.....


I

em todos os edifícios

da urbe/

ouvirei o teu centro/

como a rosa

para

abrigo/


II


há mortes que não sabem/que a morte

é um verso/ que deixa

destroços/



como um grande naufrágio



III


um pássaro

há pouco

recebia os teus versos/ em

telepáticas línguas/



chove muito

muito/



a chuva arrasta o teu nome na boca


Maat 7

.....


Passeaste em caminhos de água
Lavando a sede ao calor da alma

A sílaba que procuraste toda a manhã
Soou agora no silvo de águia
O corpo e a terra voam fundidos

Esvoaça o brilho assim de madrugada




Foto de João Coutinho

quarta-feira, junho 08, 2005

Além da esperança


(...) Pensei que é bom olhar para o mundo com ingenuidade e sem construções.

Podemos assim perceber quanto o que nos move é tão pequeno e sem sentido. Podemos ter medo. Podemos ter esperança e teremos que a construir cada vez melhor, depois de se quebrar.

A seguir ao espectáculo, fomos pela rua fora até ao carro. Fui olhando para as montras coloridas cheias de apelos aos sentidos. Olhava também para o chão e para as casas da baixa com ar sujo e triste. Como se a cidade fosse um cenário degradado e ilusório e o mundo estivesse unicamente dentro de nós. O teu braço a aquecer-me o ombro era afinal a esperança, a única forma de não ter medo.



Foto de João Coutinho

quinta-feira, junho 02, 2005

Da esperança e outras coisas


Lembrei-me de uma conversa onde afirmei que tinha ainda muito para aprender e de alguém me ter respondido “ não, tens tudo para desaprender “.

E fiquei a pensar nessa frase. Pensei que tudo quanto julgava saber não faz sentido. De quanto o sentido aparece claramente nas coisas mais simples, quando simplesmente as olhamos sem certezas.

E quando me falaste dela eu entendi o que era DESAPRENDER.

Há uns dias fui vê-la contigo.

Para além das coisas que já me tinham feito sorrir antes, ouvi-a falar do medo.

Dizia que só se sente medo no início, tal e qual como só se gagueja no princípio das palavras, nunca no final.

Falou da esperança, como se fosse uma prateleira de uma casa junto a uma linha de comboio: de cada vez que ele passa caiem as coisas que estão em cima e nós tratamos logo de as substituir por outras, cada vez de pior qualidade, pois sabemos que se vão partir novamente. A esperança...



(...)


Foto de João Coutinho: Parabéns, João, pela exposição na Livraria Navio dos Espelhos e pelo artigo na revista Foto Digital.

quinta-feira, maio 26, 2005

Viagem


Passei muito tempo a fazer malas. A virar silenciosamente as costas e ir embora. Cidades novas, vertigens, momentos e nada. Aprendi a chegar para partir depois. Sabia, ao entrar nas casas, que ali não era o meu lugar.

Sempre o apelo do deserto. Dos dias quentes, das alucinações. Das noites geladas e do lençol ténue de estrelas. Entregar o corpo à noite e ao silêncio.

Sabemos demasiado bem o que é o sofrimento para não reconhecermos o instante eterno quando o vivemos. Talvez não tenhamos casa. Desta vez nem trouxe nada. Não quero desfazer e fazer depois para ir embora.




Foto de João Coutinho

sexta-feira, maio 20, 2005

O sol


Estava assim cabeça inclinada
Olhos perdidos pela sala
E carícias de uma música leve como o ar
Pensava numa conversa sorrindo
Pensava que alguém tinha uma mão aberta
Sem pedras dentro só com ternura

Pensava nas horas a passarem
No ponteiro dos segundos a correr
E se vale ou não a pena pensar demais
Se os acasos terão algo para nos dizer
Ou se sendo acasos o são apenas

Pensava que fiquei leve de repente
Porque no meio da noite vi qualquer coisa
Acho que vi o sol no mar mas não seria
.



Foto de João Coutinho

( sim, a música de que falo é precisamente esta que está a tocar e que TU me sugeriste )

quarta-feira, maio 04, 2005

Até já, está bem?



Até que um dia os mágicos risquinhos do TCA vieram desenhar as minhas palavras...

E agora, Monalisa vai descansar. Volta em breve.

quinta-feira, abril 28, 2005

Sons e Sonhos


Fato negro e sapatos brilhantes
Inclina as costas e semicerra olhares
Passeia os dedos por preto e branco
E sobe etéreo inundando a sala

Cordas esticadas martelos marfim
Em êxtase o olhar sem nada ver
A música que me leva que te leva
A calmaria das águas límpidas
A paz a procurada paz tão procurada
Que surge em acordes como agulhas
Nas pontas dos teus dedos
No fundo dos meus olhos.



Foto de João Coutinho

quarta-feira, abril 20, 2005

Nada


Novamente em espiral recolho-me
Nenhum som fora da minha cabeça
Nenhum som dentro de mim
Dobro-me e desdobro-me
Em pensamento zero


Foto de João Coutinho

Inquérito

A Sara apanhou-me na “ rede “ e aí estão as respostas:

Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro querias ser?
O livro por escrever.

Já algumas vezes ficaste apanhadinho(a) por uma personagem de ficção?
Quando terminei o Equador custou-me muito a ideia de não conviver mais com aquelas personagens e com aqueles lugares.

Qual o último livro que compraste ?
Nossa Senhora de Burka de Maria Azenha
Nenhum Nome Depois de Maria do Rosário Pedreira
Cartas a Um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke

Qual o último livro que leste?
O Processo de Kafka

Que livro estás a ler?
Breve História de Quase Tudo de Bill Bryson
Anéis de Fumo de Laurie Anderson
366 Poemas Que Falam de Amor – Antologia Organizada por Vasco Graça Moura
Anos 90 e Agora – Antologia Seleccionada e Organizada por Jorge Reis-Sá

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
Ulisses de James Joyce
O Pêndulo de Foucault de Humberto Eco
O Memorial do Convento de José Saramago
Rosa do Mundo – 2001 Poemas Para o Futuro
O Principezinho de Saint Exupéry

A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
JAP
Mauro
Sam Paio

Porque são pessoas muito especiais e acredito que, se responderem, vou gostar de ler as respostas.

quinta-feira, abril 14, 2005

Do medo


Era outra vez pequena como quando nada sabia
Tinha medo do escuro medo do sótão e do vento
Era tão pequena dentro do meu medo
Não sabia pedir ajuda não sabia o que era medo
Era eu no canto da sala abraçada aos joelhos
Era eu em todo o lado de olhos fechados
Era eu ali desprotegida sem saber do minuto a seguir

Era eu quase sem força para te esperar
Eras tu a chegar e a levar-me pela mão

E pouco a pouco abri os olhos




Foto de João Coutinho

segunda-feira, abril 11, 2005

Casa na Duna - Dia de Sol


Hoje sentei-me sobre a duna
Olhei o brilho curvo até ao céu
Olhei embriaguei-me de olhar
O sol voltou como eu não queria
Pensei na noite negra e nas estrelas

Não sei olhar a luz assim tão forte
Enquanto não voltares

Não quero o sol não quero a chama
Enquanto não voltares

Quero as ondas do mar só nos meus olhos

Depois? Voltar a casa
Talvez voltar…




Foto de João Coutinho

quarta-feira, abril 06, 2005

Casa na Duna - Mulher na Praia


Passeia na praia a mulher da casa
O xaile negro torce-se ao vento
Chove outra vez não sei se é chuva
É frio é tanto frio que não sei donde

Onde está o cavalo o cavaleiro
Onde está tudo o que conhecia
Serão as grutas a uivar será o vento
Será a mulher em busca do cavalo
Do cavaleiro em reflexo na areia

Mas o mar uiva
Uiva o vento
Quem grita um nome?

O mar? Talvez o mar…



Foto de João Coutinho

quarta-feira, março 30, 2005

Casa na Duna - O Cavaleiro


Abrir a porta de encontro à sorte
A silhueta no reflexo
O luar branco a flutuar

Maré vazia no espelho de água
Cavalo negro e cavaleiro
Deixam as marcas na areia breve
Como se o tempo fosse parar

Seguia as trevas no teu encalço
Corria o mundo para te encontrar

Voltar a casa? Talvez voltar...



Foto de João Coutinho

terça-feira, março 22, 2005

Casa na Duna - O Teu Nome


O vento uiva o teu nome
Nas frinchas das janelas

É de mar o teu nome
Cheira a algas
Sabe na minha boca a sal

Viste-me chorar? Não viste

Os lugares onde choro são invisíveis
Como esta chama para onde olho
Como esta voz que escuto agora

O tempo passa passa o tempo
A veneziana impelida pelo vento
Bate a compasso na parede
Como o ponteiro dos segundos
No relógio que não tenho

Lá fora os ruídos da noite
Cá dentro o piano e lábios salgados

Não são lágrimas que provo
O mar ? Talvez o mar…



Foto de João Coutinho

domingo, março 20, 2005

Os nomes


Está o meu nome dentro do teu nome

Cheiram a sal a algas e a iodo
Arrepiam em salpicos de espuma branca

Ambos repetem ondas em melodia
Repetem o mar infinitamente

Os nomes ás vezes são maiores que oceanos



Foto de João Coutinho

quinta-feira, março 17, 2005

Sobre o amor e o medo


Desta vez pensei sobre a fragilidade
Ouvi ao longe uma explosão
E vi lágrimas e sangue e tanta dor
E várias mãos douradas a segurarem-me
A prenderem-me a abraçarem-me

E o túnel vertiginoso a deslizar nos meus olhos
E medo tanto medo tanto tanto tanto
E a mão dourada a tentar alcançar-me
E a mão dourada pousada na minha testa

E pensei que as pessoas de cristal se estilhaçam
Que as cidades não suportam pessoas de cristal

E nesse momento soube que há mãos que nos seguram
Que o amor não tem limites nem espaço nem tempo



De Maat :

vou escrevendo em cima dos andaimes da luz
a tua voz entrou pelas janelas das grandes cidades
aí o tempo ofuscou a memória das casas
e a cor natural dos campos verdes

já não há sinos nem pássaros nas árvores
para anunciar o meio-dia do vento
nem o silêncio tranquilo da tarde para adormecer
nos espelhos do adro

só as pequenas sílabas das abelhas escondidas nas colmeias
vêm em viagem pelo transitório sangue das calçadas
no ventre das pedras ouço o meu nome o teu nome

o estranho fogo de que o amor é feito




Foto de João Coutinho

terça-feira, março 15, 2005

As estradas


A seguir contavas-me uma história
Escutava atenta mergulhada nos teus olhos
Não eram as palavras que ouvia
Via os quadros que pintavas
Em cores que só eu conheço e tu me ensinas

A seguir contavas-me uma história
Falavas-me das viagens que fazes pelo mundo
Disseste-me também que não vieste
Mas eu sabia a dada altura que já estavas
Mesmo sem teres chegado ainda

É que há estradas em cima das estradas
Umas são de alcatrão
Outras não são

Serão de terra ou de lua
Têm caminhos concretos e destinos certeiros

São essas que te trazem antes de chegares



Foto de João Coutinho

sexta-feira, março 11, 2005

Domingo


Não te conheço ainda não sei quem és
Disseram-me de ti tantas coisas que não ouço
Disseram-me de ti que tinhas visto o mundo

Não conhecia ninguém que tivesse visto o mundo
Sempre estive encerrada na minha aldeia
Nunca soube bem o que encontrar do lado de lá do monte

Uma vez vieste à missa do meio-dia
E encontrei-te ao sol da tarde no adro da igreja
Eu era a menina de tranças e tu o rapaz de blusão de couro

Mas os meus olhos eram da cor dos teus
E o mundo que eu não vi estava no teu olhar
E o mundo que eu vi estava em mim e tu soubeste



Foto de João Coutinho

segunda-feira, março 07, 2005

Correntes de prata


Talvez te pareça um poema de amor
O que vou escrever hoje
Vou escrever sobre as sintonias
Que se movimentam no ar que respiro
Que flutuam à minha volta sempre que acordo

É que hoje sonhei com correntes de prata
Que se alongam pela noite e me deixam flutuar
E vezes sem conta repeti um nome

E depois acordei e fiquei desperta
Serenamente
Não pensava em nada
Deixei apenas que me transportasses
Olhos abertos no escuro

Inclinada em mim talvez
Ou simplesmente em silêncio




Foto de João Coutinho



A música : Lent et Doloreux de Erik Satie - uma sugestão muito adequada de JAP, dos Dias Atlânticos.

E agora, quer contar a história do lugar que deu origem a estes Dias?

quarta-feira, março 02, 2005

Vidro


Estava estilhaçada em fragmentos
Estava nas paredes sujas dos prédios na cidade
Nas valetas com papeis desfeitos e latas de coca-cola
Nos carros e no fumo negro dos canos de escape
Nas televisões em volume máximo
Nas pessoas a correr aos tropeções
Nos cães com sarna e nas crianças desabrigadas
Estava estilhaçada na dor e no ruído

Um dia uma mão dourada pegou no vidro translúcido
Que brilhava na calçada e guardou-o no coração
Então encontrei-me no silêncio e fiquei só uma



De Maat7:

apenas uma estrela
fazia um pequeno desenho no chão
um brilho de primeiro dia
de fuga e desafio

jamais a encontrariam na abóbada celeste
entre os nomes e as pedras limpas
da alegria

secreta quase invisível
era um nome à luz do trigo
para ser dia
ou cítara do vento para adormecer os deuses
e habitar o silêncio despojado e nu
no brilho dos navios

só o meu destino passaria neste bosque
exacto como um rio




Foto de João Coutinho

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

O Brilho


O brilho está nos olhos mas donde vem?
Talvez do orvalho nas folhas das árvores
Ou das asas húmidas dos pássaros pela manhã

A névoa está nos olhos mas donde vem?
Talvez das lágrimas presas em jaulas de força
Ou da bruma dos bosques por onde me perco

E em cada amanhecer o nevoeiro aclara-se
E passo a passo caminho descalça pelo trilho

Nas pedras nas folhas esmagadas no frio da madrugada

Caminho em silêncio para a clareira
E vejo ao fundo a luz na floresta
E vejo ao fundo a luz em mim.




De Maat :

inclino-me
à luz
que trago das aves

desde
o
céu que vêm comigo

a manhã inicia-me em seu voo
um antigo voo
nele mil vezes morri
mil vezes sem uma palavra na boca
sem uma estrela para iluminar o rosto
ou uma pedra para inclinar o ouvido
e sentir o sangue quente
da amada terra


apenas
o vazio quebrado em seus múltiplos espelhos
em sons quase imperceptíveis
quase alados
quase névoa

só perfume e feridas


andei toda a noite em viagem toda a noite

não encontrei senão o vestido branco
da minha sombra



Foto de João Coutinho

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Cais


Sei ainda que sabor tinham os dias quando te conhecia
Guardo sempre o melhor de cada estação
No cais de embarque os comboios chegam e partem
E vou dizendo adeus a alguns rostos nas janelas
Guardo em mim sempre tudo o que me ensinam
Guardo mais que tudo o carinho com que os olhei um dia
Esqueci o que veio depois como se nunca tivesse vindo
E saí na estação que entendi ser a minha
E agora estou em casa e olho tranquila os dias
Que passam como comboios de alta velocidade
E levam e trazem sonhos e pessoas
E a vida sorri sempre sempre sempre e apesar.




Foto de João Coutinho

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

A garça


Mãos geladas em arrepio
Fim de tarde negro
E dois pontos brancos

A garça branca espia a água
A lua branca espia a terra

Muro milenar em pedras gastas
Onde me debruço a olhar o rio
Lua branca na água negra
Garça branca no céu escuro

Silêncio em mim no ar suspenso
Círculos concêntricos nascem no rio

Noite serena sem tempestade
Olhei o céu e não chovia



E do outro lado, hoje À Procura de Cleopatra



Foto de João Coutinho

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

...


Onde está a minha capa de invisibilidade?
Perdi-a algures e precisava de sair por aí
Sem que ninguém me olhasse e reparasse
Que caminho alheia focando infinitos
Quero cobrir-me de invisível
Que ninguém me veja nem repare
Que não sou de cá não conheço as ruas
Quero vaguear sozinha pelo nada
Olhar paredes portas mesas e cadeiras
E ver estrelas luzes brilho e vastidão



De Maat :

atravessa pois a casa o bosque das horas
a voz suspensa num grão de luz
não desejes nem tu possas querer nada
nem fazer perguntas às mais velozes águas
o céu e o mar são o teu lençol
a estranha porta do nada que se abre
para a solidão das aves e para os pobres

abertas são as casas as mais frágeis casas
no azul inquieto da memória ou se quiseres
a capa invisível onde acordada dormes



única e igual és nesta harpa de espinhos
o coração da lua
o sol
no búzio do ouvido


crucificada
cantas

silencioso o brilho




Foto de João Coutinho

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Viagem


Pensei muito tempo acerca da chuva
Pensei na chuva que ficou presa nas folhas
Pensei também no cheiro a terra quando cai
E em fins de tarde vermelhos e quentes
Pensei em horizontes distantes na savana
Em árvores secas recortadas no fim de dia
Pensei em mim como se lá estivesse
E senti o calor o cheiro o espaço
Pensei então que fui lá sem lá ter ido



Foto de João Coutinho

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Saudade de Sevilha


Aproximava-se a preto e a vermelho
A morena esguia com liga na meia
Batia o sapato no tablado
E vibrava o ar embriagando os olhos

Sentados nas mesas da penumbra
Copo com gelo e olhares intensos
No deslumbramento da chama
Na cor temperada a sal e flamengo

Não era sequer bonita a morena
Passava na rua e ninguém a via
Mas quando a alma sai na música
Hipnotiza o olhar de quem a olha




De Luz Intensa:

Bailas, morena de mirada infinita,
la esencia y misterio de ser bailaora.
Un sentir flamenco de alma que grita.
Danzar la música que ama y que llora.
Entre tus manos hay algas marinas
enredadas en ti, son caracolas.
Desprendes perfume de agua salina
y al moverte, tu vestido es de olas.




Foto de João Coutinho