quinta-feira, junho 05, 2025

Cais

 

Sei ainda que sabor tinham os dias quando te conhecia

Guardo sempre o melhor de cada estação
No cais de embarque os comboios chegam e partem
E vou dizendo adeus a alguns rostos nas janelas

Guardo em mim sempre tudo o que me ensinam
Guardo mais que tudo o carinho com que os olhei um dia

Esqueci o que veio depois como se nunca tivesse vindo
E saí na estação que entendi ser a minha

E agora estou em casa e olho tranquila os dias
Que passam como comboios de alta velocidade
E levam e trazem sonhos e pessoas

E a vida sorri sempre sempre sempre e apesar


Imagem de wirestock em Freepick

Descrição da imagem: Fotografia a preto e branco de uma ponte ferroviária antiga, com carris enferrujados no centro que se estendem para uma área arborizada. A estrutura metálica da ponte enquadra a vista, criando uma sensação de profundidade.


segunda-feira, março 10, 2025

A escrita de poesia e o poder da linguagem

 

Fotografia a preto e branco de uma mão de pele escura segurando uma caneta, escrevendo numa página em branco de um caderno aberto. O foco é a ponta da caneta e a textura do papel.

Já alguma vez lhe ocorreu que o processo de criação de poesia é uma arte complexa e desafiante?

À primeira vista, escrever poesia pode parecer simples, mas olhando com mais atenção, percebemos a profundidade e a precisão necessárias.

Se pensarmos em alguém que escreve poesia, seguindo modelos clássicos como o soneto, percebemos que a escolha das palavras para expressar sentimentos é bastante criteriosa e sujeita a limites estruturais.

Vamos, então, explorar a complexidade da escrita de poesia, utilizando como exemplo a estrutura dos sonetos.

Harmonia Estrutural

São compostos por linhas de 10 sílabas, estruturadas ritmicamente. Cada palavra conta e deve encaixar-se perfeitamente no esquema métrico.

Forma

Seguem o pentâmetro iâmbico, com um ritmo e fluidez que exigem precisão. A forma é rígida, mas permite uma expressão rica e variada.

Mensagem

Transmitem emoções e temas complexos com profundidade. Em apenas 14 linhas, o poeta deve capturar a essência de um sentimento ou ideia.

Escolha de Palavras

São ricos em metáforas, imagens e significado. Cada palavra é escolhida cuidadosamente para evocar uma emoção ou pintar uma imagem vívida.

Emoção

Exploram emoções como o amor, a tristeza ou a saudade. O poeta deve ser capaz de tocar o coração do leitor com a sua escolha de palavras.

Equilíbrio

Equilibram a criatividade numa forma rígida. O desafio está em ser original dentro de limites estruturais bem definidos.

Por isso, a poesia requer um bom domínio da linguagem e uma compreensão profunda das palavras para inspirar sentimentos.

É isto que faz da linguagem um instrumento tão poderoso e complexo, e por isso mesmo, o toque humano é essencial e insubstituível.

 

Image by rawpixel.com on Freepick

Descrição da Imagem: Fotografia a preto e branco de uma mão de pele escura a segurar uma caneta, a escrever numa página em branco de um caderno aberto. O foco está na ponta da caneta e na textura do papel.


sexta-feira, janeiro 17, 2025

Solitas, solitatis

 

A Saudade é um sentimento universal; mas, só na alma lusitana, atinge as alturas supremas da Poesia, contendo uma concepção da vida e da existência.

Pascoaes, T. (1986). Da saudade. Em A. Botelho & A.B. Teixeira (Orgs.). Filosofia da Saudade (p.124-144). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (Original publicado em 1952).


Habitados a tal ponto pela saudade, os portugueses renunciaram a defini-la. Da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do seu sentimento da existência, a ponto de a transformarem num ‘mito’. É essa mitificação de um sentimento universal que dá à estranha melancolia sem tragédia que é o seu verdadeiro conteúdo cultural, e faz dela o brasão da sensibilidade portuguesa.

Lourenço, E. (1999). Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras.

 

Foto de João Coutinho

Descrição da imagem: Fotografia de dois barcos de madeira antigos, com suas proas rústicas visíveis, ancorados em água coberta por uma densa camada de lentilhas-d'água verde-vibrante. Uma corrente de metal enferrujada pende de um dos barcos.


terça-feira, dezembro 31, 2024

Amicitia

 


Pode ser esclarecedor recordar que o termo latino para amizade, amicitia, deriva da raiz am, que no latim popular designa «mãe» (amma) e «ama» (mama). 

A etimologia da amizade reenvia-nos, assim, não para uma qualquer experiência casual, mas para a memória daquela afeição primeira que estrutura silenciosamente a existência. 

Por isso, na sua espantosa leveza, e sem alardes, a amizade dialoga com coisas muito fundas dentro de nós: faz-nos reviver o primeiro amor com que fomos (ou não fomos) amados; toca as nossas feridas, mesmo as que não conseguimos verbalizar; transmite-nos confiança para sermos o que somos e como somos; estimula-nos a progredir vida fora.


Nem todas as nossas amizades chegam a tomar consciência da extraordinária viagem interior que as mobiliza. Porém, mesmo quando a amizade parece simplesmente prosaica, é este programa que realiza, pois há sempre um instante em que os verdadeiros amigos se revelam como aqueles que estão dispostos a acompanhar-nos aconteça o que acontecer.


Não esperamos nada dos nossos amigos, e essa franqueza é fundamental. Mas, não esperando nada, esperamos tudo, na medida em que a sua existência nos permite existir. A doçura da amizade é equivalente a esse seu rigor mais infrangível: o meu amigo é este próximo que não deixa de ser distante. Mas é também o distante que sabe tornar-se próximo e íntimo. 

Por isso, não é a posse que conta na amizade, mas a afeição, a dádiva atuada no desprendimento.

José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'

Foto: António Barbosa