sexta-feira, julho 26, 2024

Um carta

Queria que soubesses que morei na tua casa. 


Andei contigo na escola primária e saí muitas vezes com os teus sapatos. 


Sei bem dos passos inseguros. 


Sei do espanto e do mundo silencioso no canto da sala. 


Lembro-me do fascínio pelas casas grandes e pelos segredos escondidos dentro dos armários.


Colei muitas vezes o nariz ao vidro da tua janela e pensei que também gostaria de brincar na rua. 


Se hoje existe um lugar onde nenhuma linguagem se fala e se nesse lugar nos encontramos inevitavelmente, é porque percorremos longas distâncias lado a lado.



Escrevo também no blogue da minha página profissional. Se os temas relacionados com tradução lhe interessam, encontra-me aqui.

terça-feira, junho 25, 2024

Sete vidas

 


Nunca soube o teu nome. Entraste numa tarde,

por engano, a perguntar se eu era outra pessoa -

um sol que de repente acrescentava cal aos muros,

um incêndio capaz de devorar o coração do mundo.

 

Não te menti; levantei-me e fui levar-te à porta certa

como um veleiro arrasta os sonhos para o mar; mas,

antes de te deixar, disse-te ainda que nessa tarde

bem teria gostado de chamar-me outra coisa - ou

de ser gato, para poder ter mais que uma vida.

 

Maria do Rosário Pedreira in Nenhum Nome Depois


Foto de João Coutinho


P.S. Para ler mais sobre língua portuguesa, visite o meu blogue profissional FAZT.


segunda-feira, abril 22, 2024

Simplesmente

 

Simplesmente palavras nos meandros dos teus olhos

Simplesmente contornos de carícias à solta pelo vento

 

Nem mais nem menos que lábios voláteis

beijando os teus cabelos

Nem mais nem menos que dedos transparentes

na pele do teu rosto

 

Não sonhes num minuto escapar do que procuras

Nem sonhes que caminhos no futuro não te farão chorar

Não digas não demandes as origens do planeta

Nem pretendas com regras e livros sinuosos

dizer do que não sabes

Não sabes o segundo na fracção de tempo imediato

Nem sabes que dicionário consultar para dizeres

 

Que tudo o que me digas não é nada

E chega rir sorrir trocar coisas tão vãs como trocamos

Porque nos meandros dos teus olhos cruzam-se os meus olhos

quinta-feira, março 28, 2024

Não deixeis um grande amor

 

Aos poucos apercebi-me do modo

desolado incerto quase eventual

com que morava em minha casa

 

assim ele habitou cidades

desprovidas

ou os portos levantinos a que

se ligava apenas por saber

que nada ali o esperava

 

assim se reteve nos campos

dos ciganos sem nunca conseguir

ser um deles:

nas suas rixas insanas

nas danças de navalhas

na arte de domar a dor

chegou a ser o melhor

mas era ainda a criança perdida

que protesta inocência

dentro do escuro

 

não será por muito tempo

assim eu pensava

e pelas falésias já a solidão

dele vinha

 

não será por muito tempo

assim eu pensava

mas ele sorria e uma a uma

as evidências negava

 

por isso vos digo

não deixeis o vosso grande amor

refém dos mal-entendidos

do mundo

 

José Tolentino Mendonça in Longe Não Sabia


Foto de João Coutinho


P.S. Para ler mais sobre língua portuguesa, visite o meu blogue profissional FAZT.