Pode ser esclarecedor recordar que o termo latino para amizade, amicitia, deriva da raiz am, que no latim popular designa «mãe» (amma) e «ama» (mama).
A etimologia da amizade reenvia-nos, assim, não para uma qualquer experiência casual, mas para a memória daquela afeição primeira que estrutura silenciosamente a existência.
Por isso, na sua espantosa leveza, e sem alardes, a amizade dialoga com coisas muito fundas dentro de nós: faz-nos reviver o primeiro amor com que fomos (ou não fomos) amados; toca as nossas feridas, mesmo as que não conseguimos verbalizar; transmite-nos confiança para sermos o que somos e como somos; estimula-nos a progredir vida fora.
Nem todas as nossas amizades chegam a tomar consciência da extraordinária
viagem interior que as mobiliza. Porém, mesmo quando a amizade parece
simplesmente prosaica, é este programa que realiza, pois há sempre um instante
em que os verdadeiros amigos se revelam como aqueles que estão dispostos a
acompanhar-nos aconteça o que acontecer.
Não esperamos nada dos nossos amigos, e essa franqueza é fundamental. Mas, não
esperando nada, esperamos tudo, na medida em que a sua existência nos permite
existir. A doçura da amizade é equivalente a esse seu rigor mais infrangível: o
meu amigo é este próximo que não deixa de ser distante. Mas é também o distante
que sabe tornar-se próximo e íntimo.
Por isso, não é a posse que conta na
amizade, mas a afeição, a dádiva atuada no desprendimento.
José Tolentino Mendonça, in 'O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas'
Foto: António Barbosa