Quase te sinto como se fosses gente. Adivinho a mágoa de te ter deixado. Olho para ti hoje: linda e imponente. Queria voltar e não posso mais. Queria subir as escadas e espreitar outra vez todos os recantos de que eu me lembro.
Tal como o passado ficou no seu tempo, também tu já não me pertences.
E passo na rua. E olho para ti, quase engasgada na mágoa de não seres minha.
O que é injusto, porque qualquer um que entre hoje aí, não nasceu aí. Não deu aí os primeiros passos. Não teve os grandes pavores dos fantasmas do sótão. Não vestiu os vestidos de baile da avó, tirados do baú. Nem as combinações brancas de bordado inglês, boas para dançar ballet. Não viu os fins da tarde à janela com as andorinhas em bando a darem voltas à casa. Nem sentiu o cheiro do rio e escutou as rãs no Verão. Não ouviu o sino da igreja a tocar a cada quarto de hora. Não passou os serãos à lareira com os adultos a beberem vinho com mel. Não ouviu a chaminé enorme a uivar com o vento. Nem pôs aí as cartas para o Menino Jesus. Não viu o pai à janela. Nem jogou ao burro em pé com a mãe. Não brincou com as vinte bonecas. Nem leu aí os seus primeiros livros.
Nem sei se existirá agora, mas havia ai um quarto que foi onde eu nasci. Tinha uma clarabóia no tecto e a minha irmã espreitava por lá. Também foi aí que vi o meu pai dentro duma caixa e não percebi porquê.
E toda a gente que passe agora por aí nunca te poderá sentir como eu te sinto. Vinte e cinco anos é um vida. É quase toda a minha vida.