quinta-feira, setembro 30, 2004

Praia


De imediato o cheiro a sal e a iodo. Valeu a viagem para estar aqui. De todos os lugares era este o único que me apetecia.

E pensar: como se escreveria sobre este momento? Como se diria? E, mais uma vez, as palavras serem tão pouco.

A água verde translúcida a formar-se em ondas. Água a molhar a túnica branca. Formações em tubos, com zonas de transparência e explosões de espuma à minha volta. Um brilho ofuscante que confunde céu e mar. Uma brisa morna a despentear cabelos. Os cabelos com ondas também - de sal e de vento.

E o pensamento quase vazio.

Bebedeira de cheiro e de arrepio de água gelada. Olhos perdidos num traço de gaivotas ao longe. A voar em formação. Um traço nos olhos, um sorriso.

A pensar: todas as histórias têm um fim? Mesmo as que inventei nos meus sonhos?

2004/09/25


Foto de Armando Jorge

quarta-feira, setembro 29, 2004

Festa III


Feiras Novas - festa que até hoje acontece pelas ruas, pelas margens do rio, por todo o lado.

Naquele tempo, a diversão principal girava à volta do folclore. Lembro-me que íamos também para as tascas, rir à gargalhada com os duelos de cantares ao desafio.

Nesta mesma praça, organizávamos rodas enormes e executávamos voltas e voltas milimetricamente aperfeiçoadas. Passávamos a noite assim e cresci a viver as festas desta maneira.

Poderá parecer estranho para quem não conhece, mas a magia das Feiras Novas encerrava-se nesse espírito genuíno e popular, onde a forma de nos divertirmos era andarmos na rua e nas tascas a viver a festa com as pessoas das aldeias e a tentar aprender o máximo acerca da tradição.

Mas agora já não é assim. Embora ainda venham muitos homens com concertinas, a música techno abafa-lhes o som. Agora parece mais que estamos numa mega festa da cerveja e prova disso é que as grandes marcas se degladiam pelo patrocínio.

Quem conhece sabe do que falo: não existia emoção maior do que entrar numa roda de dança. Um dos amigos a comandar a coreografia, a gritar o momento das voltas, dos passos lentos ou acelerados. Com um código próprio. Serrou para abrandar e organizar. Picou para acelerar o ritmo e pôr os braços no ar. Virou para começar a girar vertiginosamente. A música em sintonia. Concertina no serrado e concertina com castanholas no picado e nas voltas.

E não, não pertencia a um rancho folclórico. Era só um grupo de amigos que se juntava e dançava na rua. E sei que muita gente que desprezava estas coisas, na hora de nos ver dançar, daria tudo para estar lá no meio.


terça-feira, setembro 28, 2004

Festa II

Nesse momento lembrei-me da época em que aprendi a dançar folclore minhoto. Muito pequenina. Depois das férias na praia, as noites de Verão eram preenchidas com esta actividade. O irmão de uma amiguinha de infância, verdadeiro purista das coisas do Minho, chegava com os amigos para passar o mês de Setembro por cá e organizava serãos dançantes.

A casa era um belíssimo solar no centro da vila, com claustros e um mui nobre pátio em pedra. Era lá que se dançava e ele tocava concertina. Os grandes ensinavam os pequenos . E lá tirávamos os sapatos e os pezinhos tentavam acompanhar as coreografias complexas, as voltas e as trocas. Rapidamente nos familiarizamos com aquilo, pois de alguma maneira parecia que nos corria nas veias aquele ritmo e energia.

E depois a maior das emoções. As Feiras Novas no terceiro fim-de-semana de Setembro.

segunda-feira, setembro 27, 2004

Festa I


Uma noite quente na esplanada da praça. Subitamente um ruído estridente que surpreendeu. Olho para trás e vejo um grupo de homens com lanternas e uma mulher vestida com o fato de trabalho tipicamente minhoto a puxar por um carro de bois. Os bois com uns olhos enormes e pachorrentos e cornos revirados, com uma canga sobre a cabeça. O carro, totalmente feito em madeira, chiava com o peso do milho. Exactamente igual aos carros antigos que eu via passar nas aldeias quando era miúda. E lá estava a estranha explicação para o ruído que me tinha assustado. Ia acontecer ali na praça uma simulação de desfolhada e eu não sabia.
Pouco de seguida mais uma novidade: concertinas e castanholas! E de repente a noite tranquila de conversa encheu-se de música e de alegria. E o meu pé logo a fugir para a dança. Há coisas que estão na alma e nem sei explicar porquê. Também sou música. Todas as músicas. Até esta. Não resisto a uma concertina e a um par de castanholas.

E começa assim mais uma viagem ao passado.

sábado, setembro 25, 2004

Manhã


Manhã de outono com luz de primavera
Pelos raios de sol deslizam vozes
Meigas doces de músicas que me ensinaste
E vou pela estrada sem saber as horas
Que horas são?
Onde estás agora?
Dedicaste-me este dia e estes raios de sol?
É que te vejo em todo lado
A olhar-me como se fosse uma criança
A brincar e a dizer tolices
E embora tentes manter a compostura
Sorris e não páras de sorrir.



Foto de Rui Vale de Sousa

quinta-feira, setembro 23, 2004

Perguntas


Dás-me licença
De entrar na tua vida
E pendurar na parede da tua sala
A minha janela?
Posso desarrumar tudo
Tirar os sapatos
E estender-me no teu mundo ?
Espalhar nos teus minutos
Toda as dúvidas
Que trago comigo ?
Passear descalça pelo
Corredor das tuas certezas?
Desfazer a tua cama
e dormir atravessada nos teus sonhos?
Posso entrar e sair de casa
Dás-me a chave
E não me marcas horas?

Posso voar ?

Daqui onde estou presa
Para a tua vida inteira?



Foto de Rui Vale de Sousa

terça-feira, setembro 21, 2004

Esperar


Todos os dias
Em que não estiveres
Irei escrever-te um poema
Não direi saudade
Porque nas palavras
Nada do que sinto
Poderá caber
Mas escreverei
Para que num minuto
O meu pensamento frágil
Pouse no teu ombro
E escreverei um poema
Para não esquecer
Que te espero sim
Tranquilamente
Porque tempo não é nada
Já que eu te esperei
A minha vida inteira.



Foto de Rui Vale de Sousa

segunda-feira, setembro 20, 2004

Estranheza

Pergunto
Porquê o teu sorriso
No meio desta música
Porquê a invasão
De um pensamento
Que não me pertence
E que força usaste
Para que a distância os transportasse
E espantam-me as estranhezas
Que desconfio que em permanência existem
Mas que nem sempre vislumbro
No meio do fumo dos canos de escape
E do ruído das buzinas
Nas cidades e em todo o lado
Mas sei que em fracções de tempo
Se cruzam pensamentos e sorrisos invisíveis.

sexta-feira, setembro 17, 2004

...


Silêncio, silêncio, silêncio
No meio da imensidão
De vozes e de agudos
Ferindo a alma perturbando
O fluir do pensamento vagabundo
Sem destino nem direcção.
Intuir respostas
Ignorar palavras
Inventar imagens e nomes
Perseguir uma ideia
Até à exaustão.
Não ter saída nem ver o caminho
E procurar o silêncio
Cheio de sentidos
E encontrar o sentido
cheio de silêncios.



Foto de Rui Vale de Sousa

terça-feira, setembro 14, 2004

A noite caiu


Todo o dia a noite caiu
Negra como breu

E fecharam-se os olhos
Tentando não ver.
Procurando em vão
Encontrar o dia
No meio da escuridão
.


Poema com mote de um amigo ( Maio de 2004 )

Foto de Rui de Vale Sousa

sábado, setembro 11, 2004

Encanto


Encanta-me a tua música
Que me chega de variadas formas
Encanta-me o mundo que respiro no teu ar.
O amor que não existe em matéria.
A tua mão magra tocando piano
Que diz mais de ti do que se dissesses.
O teu sorriso furtivo e vago
A promessa do que não existe.
O deslumbramento do que não se sabe.
Foge sempre para que nunca te alcance
Para que o sonho me faça correr.



Foto de António Pinto

quinta-feira, setembro 09, 2004

Saudade


substantivo feminino

1.melancolia causada pela lembrança de um bem de que se está privado;


2.nostalgia;


3.mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento de pessoas, coisas, estados ou acções; pesar;


4.plural cumprimentos a uma pessoa ausente;


5.plural lembranças;


6.plural BOTÂNICA nome de várias plantas da família das Dipsacáceas e das Compostas, e das flores respectivas;


(Do lat. solitáte, «solidão»)


In Infopedia da Porto Editora


Foto de Rui Vale de Sousa

segunda-feira, setembro 06, 2004

Sudão

Ingrid Jones, do blog Me and Ophelia, é uma inglesa que dedica toda a sua energia a denunciar as atrocidades que estão a acontecer no Sudão. Por sua sugestão, hoje - 2º dia do encontro para a paz no Sudão a decorrer no Japão - decidi dar o meu humilde contributo para recordar este assunto.E, desta forma, a Ingrid organizou um encontro virtual com gente de todo o mundo para nos lembrar o que está a acontecer. É que, embora já não se fale sobre isto nas televisões, continua a morrer gente barbaramente.


"Uma mãe segura a sua filha doente numa clínica dos Médicos sem Fronteiras, perto de Nyala, Darfur, onde a violência e a doença estão a matar milhares de pessoas"
Foto de Evelyn Hockstein/Polaris/Caare. Copyright 2004. The New Yor Times Company



No meu quarto confortável
E quente eu durmo
Eu durmo tranquilamente
E tu morres
Sofrendo horrores que
O meu cérebro não consegue imaginar
Porque todos dormimos tranquilos
E no mesmo minuto a grande dor do planeta
Não nos afecta
Passamos ignorantes pela morte
Indiferentes e silenciosos
E acordamos e pensamos ser felizes
Mas a felicidade está manchada
De sangue e barbárie.

Porque deixamos os desumanos
Tomarem conta do mundo
E não fazemos nada.

sábado, setembro 04, 2004

Parar


Queria pousar o queixo na janela
E ficar tranquila a olhar para a noite
O campo de cereais agora está cortado
E a única árvore lá no canto
Parece ainda mais sozinha.
Em noite de estrelas o céu parece maior
E todos os momentos passados ali
São fortes pela solidão encantada
Pelas conversas de mim para mim
Pelas perguntas deslumbradas de aprender
E saber que as respostas aparecem
Discretas misteriosas
Disfarçadas nas coisas normais
E que há sempre respostas
Mesmo que tardem.



Foto de Sérgio Martins

quinta-feira, setembro 02, 2004

O circo


Com todas as artes do mundo
O circo instalou-se no parque.

Vestidos de polichinelos
Os saltimbancos foram pelas ruas
Anunciar a festa.

Malabaristas atiravam ao ar
bolas de cores exibicionistas.

Cuspidores de fogo
Acendiam o dia com espalhafato.

Crianças corriam atrás
sorridentes e negligenciadas.

Um cavalo branco relinchava
Preso por sujas cordas velhas
E mulheres pintadas passeavam
Os seus corpos musculados
Entre roullotes e tendas rasgadas
Também pelas avenidas, lojas e cafés.

E a multidão esperava pela hora
Do espectáculo.

E o espectáculo acontecia todos os dias
Com toda a gente a formar sorrisos
Que não sentia
Na encenação hipócrita da vida.



Foto de Rui Vale Sousa