Vi o calendário e a primavera já começou
Não vejo as andorinhas à volta do telhado
Conto as janelas e são as mesmas cinco
Cinco retângulos de vidro uma varanda pequena
O sótão dos meus medos em ardósia preta
Um dia o poeta disse-me para fugir dali
Eu fugi tanto só trouxe comigo a minha alma
Ele disse isso porque eu disse osmose
Palavra proibida na boca de uma criança
Ele disse fuja e eu fugi
Deixei tudo até a chave da porta
Os livros do meu pai os seus escritos
A letra desenhada em cadernos deve haver
Trouxe só um poema isso trouxe
Tudo o resto ficou debaixo dos escombros
As roupas de baile das tias do Brasil
As lantejoulas os espartilhos os saltos prego
Os saiotes brancos de renda inglesa
As minhas bonecas com os dedos roídos
O caderno vermelho com os poemas
Eu era assim uma espécie de solidão e encantamento
Eu brincava comigo à volta de uma árvore
Eu brincava comigo no rio a perseguir um jornal ao vento
Eu brincava comigo a dançar Giselle
Eu dançava com o Nureyev com o Baryshnikov
Todos me diziam que era órfã e era
Olhavam-me de cima e pensavam que pena
Eu olhava escondida atrás do cabelo
Procurava duendes debaixo das cascas das árvores
Olhava as nuvens e esperava um anjo em cada raio de sol
Estudava astronomia sem saber matemática
Escrevia poemas e imitava Feijó
Cesariny Pessoa Porto-Além Espanca
Fazia votos silenciosos para gostarem de mim
Alguns não gostavam eu era esquerda
Levava ramos de flores como bandeiras brancas
Sonhava com uma alma limpa
Apesar de escrever com a mão sinistra
Hoje sou assim uma refugiada
Esquerda na vida como Drummond
Deixei tudo e trouxe esta alma
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