sexta-feira, março 17, 2023

Para onde voaram todos os pássaros?




Vi o calendário e a primavera já começou

Não vejo as andorinhas à volta do telhado

Conto as janelas e são as mesmas cinco

Cinco retângulos de vidro uma varanda pequena

O sótão dos meus medos em ardósia preta

 

Um dia o poeta disse-me para fugir dali

Eu fugi tanto só trouxe comigo a minha alma

Ele disse isso porque eu disse osmose

Palavra proibida na boca de uma criança

Ele disse fuja e eu fugi

 

Deixei tudo até a chave da porta

Os livros do meu pai os seus escritos

A letra desenhada em cadernos deve haver

Trouxe só um poema isso trouxe

Tudo o resto ficou debaixo dos escombros


As roupas de baile das tias do Brasil

As lantejoulas os espartilhos os saltos prego

Os saiotes brancos de renda inglesa

As minhas bonecas com os dedos roídos

O caderno vermelho com os poemas

 

Eu era assim uma espécie de solidão e encantamento

Eu brincava comigo à volta de uma árvore

Eu brincava comigo no rio a perseguir um jornal ao vento

Eu brincava comigo a dançar Giselle

Eu dançava com o Nureyev com o Baryshnikov

 

Todos me diziam que era órfã e era

Olhavam-me de cima e pensavam que pena

Eu olhava escondida atrás do cabelo

 

Procurava duendes debaixo das cascas das árvores

Olhava as nuvens e esperava um anjo em cada raio de sol

Estudava astronomia sem saber matemática

Escrevia poemas e imitava Feijó

Cesariny Pessoa Porto-Além Espanca

 

Fazia votos silenciosos para gostarem de mim

Alguns não gostavam eu era esquerda

Levava ramos de flores como bandeiras brancas

Sonhava com uma alma limpa

Apesar de escrever com a mão sinistra

 

Hoje sou assim uma refugiada

Esquerda na vida como Drummond

Deixei tudo e trouxe esta alma


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