quinta-feira, outubro 02, 2008

O que eu sei sobre ele



Lembro-me que era muito alto e não era impressão minha: a sua figura destaca-se nas fotografias com os amigos.

Os olhos eram verdes, de um verde impressionante, muito claro, mas muito denso.

Lembro-me da figura dele. Sei muito pouco sobre ele.

Toda a vida procurei saber mais alguma coisa, mas agora a maior parte dos amigos já morreu e a minha fonte de informação vai acabar por esgotar-se. Não sei a quem perguntar mais.

Sei que gostava de pescar e de caçar. Adorava cães e chegou a ter quinze.

Dizem que tinha um senso de justiça que usava de uma forma impulsiva e tratava qualquer situação que lhe ferisse a honra ou a honra de um amigo sem qualquer medo e na hora própria.

Era respeitado e temido. Não calava as suas opiniões. Foi perseguido por isso; na altura não se podia pôr em causa a situação politica em que se vivia.

Sei que ele e um grupo de amigos viveram dias escondidos no cemitério de cá. Depois, o dono de um solar que ainda existe, cedeu-lhes os túneis para se esconderem. Estiveram lá todos durante uns tempos e ele era o cozinheiro – dizem que fazia uns belíssimos ovos estrelados. Depois fugiram para Espanha e ele acabou por ser preso.

Julgo que por ter pertencido a um milícia que expulsou os camisas negras de cá. Ele tinha uma rua só por conta dele. Foi o que me contou um amigo que entretanto morreu.

Gostava de cozinhar. Ás vezes surpreendia a minha mãe com os banquetes que lhe preparava.

Não era romântico e não sabia mostrar sentimentos. Mas escrevia poemas. Eu já tive dois - perdi-os com as mudanças de casa. Um era para o rio Lima, outro era para ela.

Adorava ler e lia tudo o que podia sobre os assuntos que lhe interessavam. De tal forma que alguns advogados o tratavam por colega e engenheiros também. Tinha a 4ª classe.

Tenho uma foto dele no meu quarto. Usava chapéu e um lencinho a aparecer no bolso do blaser. Os olhos verdes.

Ela passava os lenços dele e eu ficava de pé à espera. Quando tinha um monte grande, pegava neles quentinhos e levava-os junto à cara para lhe entregar. Ele estava sentado numa cadeira a olhar o rio pela janela. Muito ausente.

Eu ia passear com ele e levava o meu triciclo. As pernas dele davam uns passos tão grandes que eu tinha que pedalar com toda a minha energia. Era muito alto.

Sei que ele foi embora na idade do complexo de Édipo. Li algures que as crianças não entendem a morte. Lembro-me que não sabia o que era. Diz-se que as crianças entendem a morte como abandono, rejeição. Julgo que demorei a perceber que não foi isso que aconteceu e que ele não me abandonou.

Que gostou muito de mim e achava que eu tinha umas orelhas muito bonitas : pedia sempre para me fazerem totós.

O que eu sei sobre ele cabe neste texto. Há outras coisas que sei, porque as encontro em mim.

( escrito em Julho de 2004 )