terça-feira, novembro 25, 2025

Betacismo


Já reparou que algumas pessoas que falam português, espanhol ou italiano usam apenas o som «B», mesmo quando as palavras são escritas com «V»?

Chama-se a isto betacismo. Não se trata de um sotaque, mas sim de um fenómeno linguístico, que está relacionado com a evolução das línguas românicas e contribui para a construção da nossa identidade cultural.

Em termos simples, o betacismo é uma mudança sonora onde o som «b» (a oclusiva bilabial sonora) e o som «v» (a fricativa labiodental sonora) se tornam num único som.

Essa característica linguística é comum em várias regiões, como o norte de Portugal, Espanha, sul da Itália e algumas regiões do nordeste e centro-oeste do Brasil.

Para entender por que razão isto acontece, precisamos de fazer uma viagem ao passado e olhar para a língua latina. 

No latim clássico, a letra «V» era originalmente usada para representar o som «U».

O som «V» que conhecemos hoje (a fricativa labiodental sonora) simplesmente não existia com a função que tem hoje.

Nas inscrições ou textos latinos antigos, vemos frequentemente palavras como «forvm», «meorvm», «devm» e «qvorum», onde o «V» representava o som «U».

A evolução do «V» e o aparecimento de um novo padrão

Assim, o alfabeto latino não apresentava originalmente as letras distintas «J» e «V» como as conhecemos hoje.

Essas letras foram introduzidas posteriormente em línguas como o português, sobretudo no século XVI, para diferenciar as funções vocálicas e consonânticas do «I» e do «U». 

Mudanças políticas e diferenciação linguística

O século XVI foi marcado por transformações políticas e culturais importantes.

A Reconquista Cristã permitiu um maior contacto com a língua e cultura árabe, além de concentrar o poder nas áreas centrais do reino.

Após a ascensão da dinastia de Avis, que reduziu a influência da nobreza do norte de Portugal, a variante do português falado nesta área central tornou-se o novo padrão linguístico.

Curiosamente, esta variante central já tinha desenvolvido o som distinto do «V» (a fricativa labiodental sonora).

No entanto, apesar de o norte ter perdido o seu poder político e cultural, as pessoas mantiveram a sua forma de falar.

Isso explica o motivo pelo qual o fenómeno do betacismo permanece presente no norte de Portugal.

Linguistas como Maria Alice Fernandes e Esperança Cardeira sugerem que esse «nivelamento» não foi acidental. Consideram que «pode ter sido consciente e destinado a distanciar-se propositadamente das variantes do norte, o português e o galego», enfatizando o seu papel na «construção de um símbolo de identidade típico da dinastia reinante — a Casa de Avis».

O betacismo hoje: um legado vivo 

Ainda hoje, os profundos laços históricos e geográficos do norte de Portugal com a Galiza ajudaram a preservar muitas características da língua antiga.

É por isso que, para pessoas como eu, do norte, estas pronúncias tradicionais são simplesmente a forma como falamos.

Uma pessoa com sotaque do norte que viaja para o sul percebe que o seu sotaque distinto é bastante percetível.

Às vezes, algumas pessoas do sul têm até dificuldade para entender certas palavras mais antigas usadas no norte.

Tendo crescido na região do Minho, que faz fronteira com a Galiza, essa ligação linguística é particularmente forte.

Entendemos perfeitamente o galego, muitas vezes usando as mesmas «palavras antigas» que estão próximas das suas raízes latinas.

Partilho consigo uma memória de infância: na vila onde nasci e cresci era mais fácil captar o sinal de televisão de Espanha. Por isso, em criança, vi os desenhos animados dobrados em espanhol.

Esse bilinguismo informal não só se revelou precioso na minha carreira profissional, mas, olhando para trás, reforçou e solidificou o meu próprio betacismo, tornando a fusão do «B» e do «V» uma parte natural da minha forma de falar.


Créditos da imagem: Scapin-Pompeii (Pixabay)

 Descrição da imagem: 

Fotografia de grande plano de uma antiga inscrição romana em pedra com texto em latim esculpido. As letras estão esculpidas em alfabeto romano maiúsculo (capitalis monumentalis) sobre pedra de cor clara. Os fragmentos de texto visíveis incluem palavras e frases parciais em latim, como ‘CONSERVAION’, ‘DIVSAMFIDVOMVIR’, ‘COLONIAHHONORI’, ‘SPECTACVLADESVA’ e ‘INPERPETVOMDEDI’. As letras esculpidas apresentam profundidade e sombra, criando textura na superfície da pedra.