domingo, agosto 03, 2014

Solitas, solitatis

A Saudade é um sentimento universal; mas, só na alma lusitana, atinge as alturas supremas da Poesia -, contendo uma concepção da vida e da existência.

Pascoaes, T. (1986). Da saudade. Em A. Botelho & A.B. Teixeira (Orgs.). Filosofia da Saudade (p.124-144). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. (Original publicado em 1952).


Habitados a tal ponto pela saudade, os portugueses renunciaram a defini-la. Da saudade fizeram uma espécie de enigma, essência do seu sentimento da existência, a ponto de a transformarem num ‘mito’. É essa mitificação de um sentimento universal que dá à estranha melancolia sem tragédia que é o seu verdadeiro conteúdo cultural, e faz dela o brasão da sensibilidade portuguesa.

Lourenço, E. (1999). Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras.

Foto de João Coutinho

quinta-feira, julho 03, 2014

Desaprendizagem

Remando contra a maré do meu carácter, invisto bastante na desconstrução. Sendo uma pessoa de convicções fortes, de teimosias e certezas, procuro melhorar-me um bocadinho contrariando este perfil. A certeza pode ser inimiga do desenvolvimento, é hostil à aceitação de pontos de vista opostos e, de alguma forma, deixa-nos dormentes nas convicções, desatentos e acríticos. Costumo dizer que gosto do cubismo das opiniões. Ver o mundo por outros prismas. É este o espírito que me foi passado pelos mestres humanistas que conheci na Faculdade de Letras há muitos anos atrás. Hoje tenho outros ídolos da desaprendizagem e, entre muitos, Laurie Anderson é a principal.

Neste documentário, do Programa ‘O Tempo e o Modo’,  RTP2, pensa alto acerca de como somos capazes de dar forma ás coisas à nossa volta, mas também à nossa identidade e, curiosamente, como nos limitamos apesar de tudo. Ora vejam.

O Tempo e o Modo

“Conheço pessoas que falam mais como máquinas do que como pessoas e gerem as suas vidas como se fizessem parte de uma grande máquina e mecanizam as suas vidas. E também são parte de uma máquina maior. Um dos meus livros favoritos chama-se ‘O prazer do Ócio’ de  Tom Hodginkson. É um belíssimo livro sobre as razões por que trabalhamos. Os animais não precisam do ler este livro, porque não trabalham, não têm empregos, andam só por aí. Uma das coisas de se fala é de doença, de quando se fica doente. Nos Estado Unidos espera-se que trabalhes na mesma, se ficares doente és um fraco. Tens que endurecer. Havia uma atitude diferente quando as pessoas iam…chama-se convalescença. Quando se melhorava passava-se algum tempo a descansar: vai para o sul de França três meses, respira o ar salgado e não penses em nada. Tira algum tempo para ti. Mas o tempo tornou-se tão tirânico. Ninguém pode tirar 30 segundos. O Tom Hodginkson sugere: planos que tinhas para esta tarde,  porque é que não cancelas e vais beber cerveja com um amigo a tarde inteira. Ou então vai dar um longo passeio a pé, ou sentar-te à beira-rio umas horas. A maior parte das pessoas diria: o quê?! Estou demasiado ocupado para isso. Ele usa outro exemplo de doença, cita uma manchete que dizia: britânicos perdem 500 milhões de horas de trabalho para a doença. Olhas para isto e pensas, desde quando é que devo à Grã-Bretanha as minhas horas de trabalho. E agora não chegaram porque estive doente. Para quem estás a trabalhar? A quem é que deves isso? Porque é que estás a fazer isto? Muitas pessoas nem sequer têm a oportunidade de colocarem estas questões, porque estão demasiado distraídas pela quantidade de trabalho que têm que ter para se manterem à tona nesta corrida ridícula em que as pessoas andam para terem coisas.  E, claro, nesta corrida para o novo iPhone, o novo iPad, o novo seja o que for, o novo carro, a nova casa, nunca é garantido que alguma vez se tenha o suficiente. Não vai haver um dia em que dizes: pronto, é isto. Tens de voltar à corrida, é assim que o capitalismo funciona. É por isso que é óptimo que este colapso da economia esteja a acontecer. Talvez as pessoas pensem: sabes que mais, não trabalhar não é assim tão mau, até é agradável. Porque é que me estou a matar a trabalhar? O que é que se espera obter com disto? Qual é a grande coisa que virá daí que de repente vai fazer com que a vida valha mesmo a pena?  Que grande prémio está à nossa espera?”


Laurie Anderson in 'O Tempo e o Modo', RTP2






segunda-feira, junho 30, 2014

Dez anos de saudade


O Sítio da Saudade faz hoje dez anos. A partir de uma certa idade o tempo voa e parece que foi ontem. Mas não foi. Neste período aconteceu muita coisa. O blog, naquele tempo vivo e cheio de actividade, foi perdendo o seu protagonismo, vítima das tendências e vítima dos ritmos de vida e dos interesses de Monalisa.
Foi criado por uma razão desagradável: a necessidade de ficar quieta em casa, devido a uma operação. Foi uma porta que abri para uma multidão de gente que eu levei para dentro da minha sala e, em alguns casos, poucos, a relação manteve-se até hoje, tendo apenas sido transferida para a coisa do momento, o facebook. 

Mudei-lhe o aspecto, passou de preto a branco, mas perdi os links todos que levei anos a coleccionar, tendo ficado resumido a um lugar solitário, sem espaço para interacção com terceiros, um quase diário privado - afinal, o aspecto que eu lhe queria dar desde o início. O meu sítio da saudade, onde registo as coisas que não quero esquecer, as emoções que vou sentindo e que reconheço nas palavras dos nossos poetas, as coisas que acontecem e que de alguma forma me emocionam, o meu sítio público escondido, o lugar do meu alter-ego, onde contorno o meu carácter reservado e liberto uma Monalisa, que querendo ser discreta, quer ao mesmo tempo dizer alguma coisa de si.

Entretanto, a minha vida foi também seguindo o seu caminho, um caminho normal, igual ao de toda a gente, com dores dilacerantes e alegrias explosivas, mas hoje com uma serenidade e uma sabedoria muito maiores do que há dez anos atrás. 

Não tendo nada mais para dizer, queria só marcar o registo dos que ficaram e continuo a seguir. Um abraço para os fellow bloggers

A Coisa da Micas, da amiga de juventude 

Art or Not Art, do querido Helinho

Blog do Agreste, do interessante Manoel Carlos

Memórias do Presente, do surpreendente Raimundo Narciso

Persistência do Traço, os maravilhosos desenhos do André Rocha

Nimbypolis, do minhoto Nilson

Kraak FM, do musical Kraak

Estamos pois de parabéns. Com excepção da Micas, amiga de sempre, em relação a todos os outros, o nosso encontro teria sido improvável. Fico feliz por, entre todas as coisas que o Sítio me proporcionou, uma delas ter sido conhecer o que pensam estas interessantes pessoas e ficar com elas até hoje. 


Foto de Luís Miguel Duarte

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Num livro antigo


Quando me saiu de dentro de um livro
que há muito não abria, um bilhete de comboio
de Lisboa para o Estoril, foi como se tivesse
voltado a embarcar nesse comboio que me iria levar
até à estação onde me esperavas, com os teus
cabelos soltos pelo vento da manhã, pensando no
tampo que ainda faltava para te ver. Porém, 
o comboio parou em cada ano
que me separava desse dia, e
acabaste por te cansar da espera
nesse cais onde o vento te soltava
os cabelos, enquanto eu ia contando
os anos à medida que me aproximava
de ti. E quando cheguei à estação
onde me esperavas, só a imagem dos teus cabelos
soltos ainda voava nesse cais vazio onde tinhas
estado, escondendo o teu rosto,
até hoje, quando um bilhete de comboio
de Lisboa para o Estoril me fez viajar
até onde já ninguém me espera.

Nuno Júdice in A matéria do poema

Foto de Luís Miguel Duarte