quarta-feira, março 21, 2012

O dia da poesia com o meu poema favorito


Aos poucos apercebi-me do modo 
desolado incerto quase eventual 
com que morava em minha casa 

assim ele habitou cidades 
desprovidas 
ou os portos levantinos a que 
se ligava apenas por saber 
que nada ali o esperava 

assim se reteve nos campos 
dos ciganos sem nunca conseguir 
ser um deles: 
nas suas rixas insanas 
nas danças de navalhas 
na arte de domar a dor 
chegou a ser o melhor 
mas era ainda a criança perdida 
que protesta inocência 
dentro do escuro 

não será por muito tempo 
assim eu pensava 
e pelas falésias já a solidão 
dele vinha 
não será por muito tempo 
assim eu pensava 
mas ele sorria e uma a uma 
as evidências negava 
por isso vos digo 
não deixeis o vosso grande amor 
refém dos mal-entendidos 
do mundo 

José Tolentino Mendonça in Anos 90 e Agora, Uma antologia da Nova Poesia Portuguesa 

Foto de Luís Miguel Duarte