quarta-feira, janeiro 25, 2006

Estradas




Chove tanto nesta estrada. Tropeço na noite e não sei onde termina o caminho. Deixei-me lá atrás e agora fujo. Serão de ficar em casa à lareira quente, mas fugir é um lugar que se move.

Queria viver só do dia e da noite, do sol e da chuva, mas tenho que ir à bomba de gasolina encher o depósito, depois o supermercado, a lavandaria e a reunião com aquele homem com dedos curtos e gordos.

Depois os dias a dizer sim, a ver os esgares sim dos outros e a pensar em fugir lá para trás e consolar aquela menina que chora.

Escrevi isto por causa de Fernando Pessoa e de um poema de que não me lembro bem.

É para a Cristiane Urbinatti.


Foto de João Coutinho

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Secretamente




Corres em velocidade máxima sobre o globo
E sobes no balanço o céu a formar mortais
Deixas pegadas pelas nuvens
E caminhas pelo dia até ao entardecer
Apagando fogos-fátuos com suspiros

Ninguém te adivinha
Mesmo quando o teu sorriso desliza
Numa gota de água


Foto de João Coutinho

quarta-feira, janeiro 11, 2006

A Barburinha


Contam-me que usei chupeta até muito tarde. Muito tarde quererá dizer três anos. Acontecia que era muito agarrada a esse objecto e disso lembro-me bem. Ás vezes não tinha chupeta para dormir. Nessas alturas fazia uma grande birra e a minha mãe levava-me para a janela e contava-me uma história.

A história da Barburinha. Era uma mulher de longa capa que surgia do escuro e descia a rua que se via de minha casa. Essa mulher levava os meninos que choravam muito pela chupeta.

Nesse tempo morava cá uma senhora que usava umas capas com gola de pele, o cabelo loiro sempre muito bem penteado, sapatos de saltos altíssimos. Muito elegante. Ninguém me disse nada, mas nunca tive dúvidas que era ela a Barburinha.



Foto de João Coutinho

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Porque é que eu escrevo?



"Ninguém pode dar-lhe conselhos ou ajudá-lo, ninguém. Há um único meio. Entre dentro de si. Procure o motivo que o faz escrever; examine se ele tem raizes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever lhe ser vedado. Isto antes de mais nada: pergunte-se na hora mais calada da sua noite: tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples: sim, tenho, então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes."

Rilke, Rainer Maria, Cartas a um jovem poeta, Porto, Edições Asa, 2002 (p.24)


Este livro marca o conhecimento com duas pessoas essenciais para mim: a que mo recomendou e a outra a quem li uma vez esta passagem.


Foto de João Coutinho