domingo, outubro 31, 2004

Rua da Mágoa I


Jóia preciosa
Vestida de branco
No neutro da vida
Para não destoar.

Água. Vento. Lua.
De cor incolor
Velho candeeiro
De esquina de rua
no fundo da dor.



Foto de Madness

quinta-feira, outubro 28, 2004

Aprender


Terei que aprender
A viver com a espera
A colar na rotina
Um toque de magia
Procurando a força
Para te esperar
E seguir em frente
À procura do dia.



Foto de Rui Vale de Sousa

quarta-feira, outubro 27, 2004

Pessoas - Álvaro Siza


Todas as cidades são a minha cidade, à qual sempre regresso. Tudo é então diferente, pois conheço que é diferente. Os olhos abrem-se à minha cidade, sou de novo um estranho maravilhado, capaz de ver: de fazer

Também tenho os meus heróis. Admiro quem é capaz de desenhar uma ponte, quem faz os cálculos de ferro e betão para que se sustente, quem a constrói.

Deslumbra-me pensar que uma construção nasce do encontro entre um momento inspirado, um papel e um lápis.

Sonho por vezes estar dentro da cabeça de um arquitecto para perceber como é que ele vê o espaço, como o perspectiva, para poder depois encaixar no meio uma nova peça que faça sentido.

Álvaro Siza espanta-me. Por uma coisa que ele sabe eu não sei. Ele conhece os movimentos da luz ao longo do dia. Conhece-os profundamente.

Então, faz janelas ou fendas por onde a luz entra e incide num dado lugar no interior, rigorosamente pensado por ele.

É o que acontece na Igreja de Marco de Canavezes, onde cada abertura nas paredes permite à luz incidir sobre o altar. De diferentes formas à medida que o dia escorre. Este detalhe faz com que o espaço se torne especial, banhado de uma luminosidade filtrada, dirigida que lhe confere misticismo, encantamento.

A perfeição nascerá então do equilíbrio entre a natureza e o atento olhar humano?


segunda-feira, outubro 25, 2004

Vertigem


Ondulam as vozes
Pelas ruas
As luzes giram giram
E ventos doces
Esvoaçam as saias
A cabeça anda à roda
E tudo ri à volta
Os braços abertos
Como nos filmes
A voltear sorrindo
Tu e a vertigem
Em mim.



Foto de António Pinto

quinta-feira, outubro 21, 2004

Momentos


Momentos de silêncio
E o tempo pára
Repousa em nós
A leveza da pluma
A brancura doce do algodão.
A brisa é morna e a água brilha
E à nossa volta tudo demora
Poderás dizer-me dos impossíveis
Do não saber o futuro
Mas o que importa?
O ar que nos cerca é tão leve
O encontro tão pleno
Que se forma uma aura.

E convidamos para a nossa mesa
Três passarinhos
Que tranquilamente se acomodaram.

terça-feira, outubro 19, 2004

Sonhos?


Pedi um desejo. Já não me lembro bem qual foi. Não espero que os traços de fumo dos aviões no céu me concedam desejos. Gosto de sonhar. Mas os deuses não concretizam sonhos. Andam ocupados demais para se dedicarem às pequenas coisas que eu quero.

Ouvi dizer que algures em Itália, numa galeria chique de lojas e cafés, existe a imagem de um touro no chão e que, se se girar sobre ela - calcando os testículos do animal - isso trará sorte.
Se fosse a Itália, também colocaria lá o meu pé e daria a necessária volta completa da praxe. Não por acreditar que esse movimento iria trazer-me sorte, mas para me lembrar que estive lá e que - na pedra gasta de dois séculos - estava também presente o meu contributo para a sua erosão.

Isto para dizer que prefiro marcar a minha vida em vários momentos. Os sonhos de nada valem se não os agarrarmos antes de acordar.

sexta-feira, outubro 15, 2004

Peço um desejo?


O céu azul translúcido
Riscado por um traço branco
Metálico e difuso de fumo
Peço um desejo?

No horizonte um rosa suave
Na minha cabeça um pensamento recorrente
O carro a afastar-se depressa na auto-estrada
A mente vagabunda
A vaguear sem prazo nem caminho

Uma música numa língua sem terra
A preencher o espaço entre mim e a ideia

Um fim de tarde como outro qualquer
A regressar não sei bem para onde
E tu algures ausente

Pedi um desejo.



Foto de Rui Vale de Sousa

quinta-feira, outubro 14, 2004

Cristal


Estilhaços de vidros esvoaçam
Dispersam-se as palavras em tornado.
A voz desaprendeu de as dizer.
Fragmenta-se o cristal subtil
Dos laços frágeis.
O corpo encolhe-se como um feto
E tilintam vidros a quebrar.

Transparência dói.
É impossível.
Utopia viver sem protecção.

Mas eu não pedi nada
Não pedi sequer para sentir.
Peço cada segundo simplesmente.
E em cada um peço viver.
Naturalmente .
Olhando e vendo
Como só o sei fazer.

Não quebrem o meu mundo
Não o abatam
Porque eu só pedi para estar aqui.



Foto de Rui Vale de Sousa

terça-feira, outubro 12, 2004

Tempo


No peito formam-se lágrimas
Espelho de gotas que deslizam no vidro
Não sei o motivo desta chuva
Nunca saberei talvez os motivos do tempo
Nunca pensei poder chorar de espanto

No vidro deslizam lágrimas
Nas costas um arrepio de vento
Aconchego a roupa para proteger
E sei que não protejo nada
O frio de lâmina vem de todo o lado
Não lhe consigo fugir nem quero
Não se foge do que se espera.



Foto de Rui Vale de Sousa

segunda-feira, outubro 11, 2004

Poesia


Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.


Carlos Drummond de Andrade


Foto de Rui Vale de Sousa

sábado, outubro 09, 2004

Momentos


Atravesso a cortina
Do sol para a chuva
Fenómeno sem descrição
Luz transformada
em água oblíqua

Deslizando no asfalto
O piano a tocar

O mundo gira
depressa demais

Pára pára
Quero viver tudo

Sim eu sei
Não posso
Entretanto
Dentro de mim
Tudo existe.



Foto de Rui Vale de Sousa

quinta-feira, outubro 07, 2004

Girassol


Pelas ruas da vida caminhando
Vejo-te em cada rosto de quem passa
Não sei bem como de repente passas
Mas não passas eu sei nem passarás
Porque no pensamento nada morre

Poderei um dia esconder-te
Num cantinho do meu sótão
Dentro da caixa dos sonhos
E abrir de vez em quando
Lembrando então nessa hora
Que um dia alguém docemente
Ao invés de rubras rosas
Me daria um girassol

E pelas ruas da vida procurando
Ver-te-ei outra vez em toda a gente
E sorrirei chorando ou encantando
Mas não passas eu sei não passarás
Porque no pensamento nada morre.



Foto de Rui Vale de Sousa

terça-feira, outubro 05, 2004

Tu


Devagarinho vieste
Querendo
Como quem não quer
Dando em frente o passo
E recuando
Surpreendida olhava-te
Como te olharei sempre
Nem sei se és real
Ou se te inventei
Se invento a ternura
Que me dedicas
Se a coloco em ti
E não é nada
Mas que me abrigas
Eu sei
Que em todo o lado
Com toda a distância
O teu sorriso me espreita
E me faz sorrir.



Foto de Rui Vale de Sousa

segunda-feira, outubro 04, 2004

Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança


António Gedeão


Foto de Rui Vale de Sousa

sábado, outubro 02, 2004

Espiral


Sem senso nem certeza
Os minutos gotejam lentamente
Tiquetacam ritmados
Na sala semi – escurecida
E o pensamento em espiral
Gira estendendo-se
E recolhendo-se flutuando
E não se fazem perguntas
Porque não se querem respostas
Só o tempo deslizando
Encaminhando
Sem pressa nem vertigem
O que tiver que ser
E se não for não seja
O minuto agora pode valer
Por todos os séculos.



Foto de Rui Vale de Sousa

Festa IV


E foi assim que naquela idade fiz muitos amigos. A dançar. Conhecíamo-nos em roda nos momentos em que os pares viravam e ficávamos a dançar com um par desconhecido. Grandes amizades cujos espaços de ano para ano eram preenchidos com cartas e mais cartas. Equivalente a abrir hoje o microsft outlook era esperar naquele tempo pelo carteiro.

Mas a verdade é que o tempo e a popularidade das Festas acabaram por destruir o que as tornou conhecidas. Todavia, a roda anda para a frente e anda novamente para trás e esta descaracterização está a levar muita gente a querer retomar o que se perdeu. Não deixa de ter graça ver pessoas que viveram esse tal espírito no passado e que hoje são executivos, advogados, técnicos, barrigudos, casadíssimos a pegar novamente nas concertinas e a ter vontade de fazer a festa como deve ser. Pela parte que me toca, voltarei com gosto a recordar todos os passos e dançarei na praça com toda a alegria.

Pois bem, estamos no Sítio da Saudade. Nome que não foi escolhido por acaso. Foi a escolha de uma palavra que representa um sentimento muito nosso e que não tem tradução directa nas outras línguas. E, quando se fala de identidade nacional, eu não tenho dúvidas acerca da nossa. Para além da nostalgia tipicamente portuguesa, aqui no Minho, esta alegria também faz parte do que somos. A dança e a música reflectem um espírito vivo e festeiro que encontra uma grande afinidade na nossa vizinha Galiza. Sobre esse assunto poderei falar um dia destes.
À perspectiva da antipatia histórica entre espanhóis e portugueses, gostaria de acrescentar a relação profunda, antiga e muito próxima entre a gente do Minho e da Galiza. Ao ponto de levar os galegos mais ferrenhos da sua autonomia a afirmar que não são castelhanos, mas sim portugueses.

Foto de Rui Vale de Sousa