sábado, julho 31, 2004

Se eu morrer novo


Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.


Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão -
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraido.



Alberto Caeiro, 7-11-1915

sexta-feira, julho 30, 2004

Poesia


A poesia esconde-se
Quando vê números
Quando houve barulho
Quando vê pessoas cinza
Esconde-se cá dentro
No abrigo incerto
Que eu sou também

Apesar de tudo
A certeza que tem
É que este abrigo
Mesmo sendo incerto
Está sempre pronto a acolhê-la

E a deixá-la sair quando quiser



Foto de Rui Vale Sousa

quinta-feira, julho 29, 2004

Navegar


Navegava agora
para fora do porto.

O marinheiro hesitava
em fazer-se ao mar:
Deixar no cais as certezas
E na terra as convicções
E fazer-se ao horizonte,
Enfrentando o nevoeiro,
As ondas maiores que estrelas,
Invadindo as ilusões

E navegava agora...

O marinheiro partia
Com vontade de ficar.



Foto de Rui Vale Sousa

quarta-feira, julho 28, 2004

Palavras


As palavras pequeninas
Nasceram num berço azul clarinho
Com a forma do mundo

Os pensamentos hesitantes
Começam a aparecer
Uma vez, outra e para sempre.

O mundo está cheio de palavras
Palavras pequeninas
Muitas boas, outras más.

Como os pensamentos e as coisas.



Foto de Rui Vale Sousa

terça-feira, julho 27, 2004

Poema de Sete Faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos!
ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima,
não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

segunda-feira, julho 26, 2004

Desilusão

Aconteceu o previsível
Aconteceu do tudo ficar nada.
A memória apagou o tempo
Que construímos.

Não é a traição que dói,
Dói-me algo muito mais fundo
Dói-me a vida e a luta
Para estar aqui.

Dói-me a vontade de desistir.

Dói-me teres conseguido
Destruir o nosso quase nada.
Aquele quase nada
Que velava quase já sem vontade.

Dói-me a mentira
O desprezo com que se mente.

Dói-me, mais que tudo
O tempo que levamos para construir
Um dia assim tão triste.

Os caminhos que nos trouxeram
A esta desilusão.

Não quero ver-te mais :
No meu coração vai ficar
Para sempre este desencanto.

sábado, julho 24, 2004

Carlos Paredes


A saudade. O som que nas cordas da alma vibra e magoa.
O homem debruçado sobre a guitarra. A protegê-la. A amá-la. A união sublime da alma e da melodia. " Amigo : uma senha tribal ". A humildade. Pessoas que, sendo humanas, estão mais próximas do divino. Deslumbramento. A eternidade.
Chorar a ouvir esta música não é dizer adeus, é celebrar a vida.


«Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas».

In Se7e 5/10/83


sexta-feira, julho 23, 2004

Sem - Abrigo


Dormem cinco pessoas
Dormem muitas pessoas
Dormem todas as pessoas

Dormem à noite
Quando trabalham de dia
Dormem de dia
Quando trabalham à noite

Há algumas que dormem
Todo o dia
Todos os dias

Porque dormem cinco pessoas
No chão na Estação de S. Bento

Porque de manhã
Guardam a sua cama num saco plástico
Porque todos os dias não tem onde dormir
Porque são velhos, reformados

Porque os que dormem todos os dias
Talvez nunca cheguem a ser velhos
Talvez nunca cheguem a acordar.



Foto de Paulo Almeida

quinta-feira, julho 22, 2004

Azul


As pessoas azuis
Entendem-se no fundo
Do seu azul

Sou água
Inconstante
Complemento
Essência

Efémera
Eterna
Eterno retorno
Vida rotativa
Circulo sem final

Natureza nata
Liberdade inata
Complemento animal

A pedra brilhante
desfaz-se no ar.


Foto de Rui Vale Sousa

quarta-feira, julho 21, 2004

Avalon


Na ilha das brumas
A fada fia o manto
Lá longe os sinos da igreja
Tocam para a missa dos padres

Nesta ilha o tempo não passa
E o momento transforma-se
Quando se quer

Estar aqui e lá ao mesmo tempo
Mundos sobrepostos

O cavaleiro não vem
Não sabe já como atravessar as brumas

Os juramentos feitos perderam-se
No nevoeiro
E a guerra destrói o castelo

O cálice está aqui, na ilha
E nunca voltará ao mundo real

Quem o procurou morreu

Morreu o cavaleiro e a rainha
O rei da espada também

Deus é sempre o mesmo.

terça-feira, julho 20, 2004

Penas


Uma pena branca
Pairava no ar
Deu voltas e voltas
E pousou aí.

E eu ...

Estava tão longe
A olhar para a água
A pensar nas penas
Das vidas perdidas
Por quem me perdi.

Não sabia onde estavas
Sequer se existias
Pensava apenas
Nas penas vazias.

Que sem nome
Nem norte
Flutuam por aí

Mas o meu pensamento
Soprou nessa pena
E ela foi voando
Pousar sobre ti.

segunda-feira, julho 19, 2004

Coincidências?


 
De há uns tempos para cá deixei de acreditar em coincidências. Várias situações ao longo da minha vida me fizeram acreditar que o mundo dá voltas e mais voltas, mas sabe exactamente onde nos colocar. Há coisas que acontecem e no momento não têm siginificado nenhum, mas muito tempo mais tarde, juntas com outras, fazem-nos entender que nada é aleatório.
 
Tive há pouco tempo uma prova enorme desse facto. A sua dimensão foi tal que nem gosto, nem quero falar nisso. Mas ainda bem que o mundo me colocou no sitio certo. Ainda bem que eu soube ouvir.
 
Agora ando atenta não sei bem a quê.
 
Sei que há uns anos atrás quando tive que escolher um pseudónimo para navegar na internet escolhi Monalisa. Agora já nem sei muito bem porque o escolhi. Mas esse nome ficou e pensei mudá-lo várias vezes, mas não me ocorre mais nada. Embora fisicamente nada tenha a ver com a imagem, há qualquer coisa que bate certo.
 
Já cheguei a pensar se não será o facto de ser canhota como Da Vinci e os canhotos me causarem simpatia. Escrevia ao contrário e quantas vezes me apeteceu fazer o mesmo: para um canhoto é dificil escrever da esquerda para a direita, sujamos o dedo todo e vai contra a nossa natureza. Depois há a vantagem de ninguém mais conseguir ler.
 
Ontem um estranho perguntou-me o porquê do nick. Falei-lhe na eternidade. Parece que não gostou. Deveria ter-lhe dito algo ainda mais banal : é o sorriso. Mas não é nada disso. Nem eu sei.
 
Sei que estes dias me sinto empurrada para algo e estou à espera.
 
Para completar o enigma oferecem-me o Código Da Vinci e lá dou por mim novamente envolvida com Leonardo e os rituais antigos.
 
Também me perguntaram acerca da Rosa Cruz.
 
Eu sei essas coisas todas, de uma forma desorganziada na minha cabeça. Neste momento juntam-se e parece que me querem levar a algum lado. Até uns poemas que eu fiz no passado falam disso e eu nem sequer estava a pensar no assunto quando os escrevi.
 
Coincidências? Também eu procuro a verdade. À minha maneira. Sozinha.






domingo, julho 18, 2004

Quarto de brinquedos


Tenho um amigo com 6 anos com quem costumo ter conversas muito importantes. No outro dia caiu a andar de bicicleta e fez um buraco de três pontos na cabeça. Ficou desesperado e fartou-se de chorar. Diz que não lhe doeu  muito, o maior medo dele era não poder pensar mais.
 
Uma vez decidiu imitar o irmão mais velho que se ajoelha sempre para rezar antes de dormir. Tinha gostado da ideia de falar com o Jesus. E lá tentou a sua sorte. Ficou muito desiludido : Ma, eu estive a falar com o Jesus, mas ele não me respondeu, até parecia que não estava ali.
 
Fico encantada com o mundo das crianças. Espanta-me o que pensam.
 
Quantas vezes eu também tentei falar com um Deus e me pareceu que ele não me respondia, que não estava ali. Outras vezes gostava de fazer um furinho na cabeça para sairem por lá algumas ideias - as que estão a mais.
 
Um beijinho para o Pedro pequenino.
 
Não queria crescer
Queria ficar para sempre
Pequenina.
 
Perder-me no meio de bonecas
E fitinhas cor de rosa.
 
Queria voar levezinha
Qual Peter Pan na Terra do Nunca.
Queria chorar e rir
Sem motivo algum,
Correr e saltar e gritar alto.
 
Queria ser pequenina para sempre
E que o meu maior amigo
Fosse o urso do armário
Que como não sabe falar
Não me mentiria nunca. 
  
  
 

sábado, julho 17, 2004

O que eu sei sobre ele

Lembro-me que era muito alto e não era impressão minha: a sua figura destaca-se nas fotografias com os amigos.
 
Os olhos eram verdes, de um verde impressionante, muito claro, mas muito denso.
 
Lembro-me da figura dele. Sei muito pouco sobre ele.
 
Toda a vida procurei saber mais, mas agora a maior parte dos amigos já morreu e a minha fonte de informação vai acabar por esgotar-se. Não sei a quem perguntar mais.
 
Sei que gostava de pescar e de caçar. Adorava cães e chegou a ter quinze.
 
Dizem que tinha um senso de justiça que usava de uma forma impulsiva e tratava qualquer situação que lhe ferisse a honra ou a honra de um amigo sem qualquer medo e na hora própria.
 
Era respeitado e temido. Não calava as suas opiniões. Foi perseguido por isso; na altura não se podia pôr em causa a situação politica em que se vivia.
 
Sei que ele e um grupo de amigos viveram dias escondidos no cemitério de cá. Depois, o dono de um solar que ainda existe, cedeu-lhes os túneis para se esconderem. Estiveram lá todos durante uns tempos e ele era o cozinheiro – dizem que  fazia uns belíssimos ovos estrelados. Depois fugiram para Espanha e ele acabou por ser preso.
 
Julgo que por ter pertencido a um milícia que expulsou os camisas negras de cá. Ele tinha uma rua só por conta dele. Foi o que me contou um amigo que entretanto morreu.
 
Gostava de cozinhar. Ás vezes surpreendia a minha mãe com belíssimos banquetes que lhe preparava.
 
Não era romântico e não sabia mostrar sentimentos desses. Mas escrevia poemas. Eu já tive dois, mas perdi-os com as mudanças de casa. Um era para o rio Lima, outro era para ela.
 
Adorava ler e lia tudo o que podia sobre os assuntos que lhe interessavam. De tal forma que alguns advogados o tratavam por colega e engenheiros também. Tinha a 4ª classe.
 
Tenho uma foto dele no meu quarto. Usava chapéu e um lencinho a aparecer no bolso do blaser. E os olhos verdes.
 
Ela passava os lenços dele e eu ficava de pé à espera. Quando tinha um  monte grande, pegava neles quentinhos e levava-os junto à cara para lhe entregar. Ele estava sentado numa cadeira a olhar pela janela. Muito ausente.
 
Eu ia passear com ele e levava o meu triciclo. As pernas dele davam uns passos tão grandes que eu tinha que pedalar com toda a minha energia. Era muito alto.
 
Lembro-me também do hospital, mas não vou falar nisso.
 
Sei que ele foi embora na idade do complexo de Édipo. Li algures que as crianças não entendem a morte. Lembro-me que não sabia o que era. Diz-se que as crianças entendem a morte como abandono, rejeição. Julgo que demorei a perceber que não foi isso que aconteceu e que ele não me abandonou.
 
Que gostou muito de mim e achava que eu tinha umas orelhas muito bonitas : pedia sempre para me fazerem totós.
 
O que eu sei sobre ele cabe neste texto. Há outras coisas que sei, porque as encontro em mim.
 
Sinto que esta impressão no início da minha vida marcou a fogo a minha personalidade. Ainda hoje quando adoro alguém, fujo ao menor sinal de rejeição para não enfrentar nunca mais uma ausência. 
  
 

sexta-feira, julho 16, 2004

Homenagem a Drummond

Mundo mundo, vasto mundo Bold
Cantava Drummond assim
Se se chamasse Raimundo
Seria igual para mim

Os que andam nas estradas
Uns tão sós outros contentes
Esquecem vidas coitadas
E vivem as indiferentes

Queria vê-los noutros sítios
Onde pudessem correr
Sem se agarrarem a mitos
Sem cuidarem de sofrer

Eu também vivo morrendo
Perco tudo no caminho
Umas vezes vou correndo
Outras vou devagarinho

Devagar se vai ao longe
Diz o povo sem pensar
Eu corro sem saber onde
E paro para chorar

Talvez um dia eu encontre
Muitas coisas que perdi
Achadas não sei bem onde
Perdidas algures em ti

Mundo mundo, vasto mundo
Onde andas que não te encontro
Perdido no mar profundo
Achado no desencontro.

2003

P.S. Poema feito num dia em que decidi experimentar se ainda conseguia fazer poemas com rima.

quinta-feira, julho 15, 2004

Caminho de Santiago


Faz hoje um ano. Partida para Santiago de Compostela. Dia chuvoso e cinzento. Ansiedade exacerbada que não me deixou dormir. A benção e uma sensação de que aquela experiência poderia mudar a minha vida.

Seguir as setas amarelas. Seguir as conchas em Espanha. Seguir caminhos onde não passam carros. Subir montanhas. Dar a mão a alguém. Aceitar a mão de um estranho.

Criar laços únicos.

Ler o pensamento de um amigo. Não precisar de falar para explicar. Não precisar de ouvir para entender.

Fazer amigos para sempre. As massagens nos pés. As massagens na alma.

Cantar e chorar de dor no mesmo minuto.

Dormir no albergue. Sensação de viagem no tempo. Fora deste mundo. No passado.

Tirar o relógio. Acordar com o nascer do sol. Ouvir alguém declamar poesia no caminho. Ouvir uma voz cristalina a cantar.

Sobreviver sem nada. Só a natureza, as pessoas e o seu imenso carinho. E o sol a dizer as horas. E a queimar.

Valorizar as fontes. Sentir o sabor da água. Valorizar a sombra. Valorizar os sorrisos e votos de quem vê passar. Os peregrinos. As conchas ao pescoço. O bastão.

Entrar suavemente nas cidades,integrá-las pouco a pouco, sem a agressão dos automóveis.

Chegar a Santiago e chorar. Entender que mais que chegar, o importante é o percurso.

Ver o turíbulo a baloiçar pela nave da catedral, o fumo do incenso a subir e sentir que a alma se liberta finalmente. Limpa e leve.

quarta-feira, julho 14, 2004

Rua da Mágoa


Jóia preciosa
Vestida de branco
No neutro da vida
Para não destoar.

Água. Vento. Lua.
De cor incolor
Velho candeeiro
De esquina de rua
no fundo da dor.

Branco precioso
Brilhante de lua
Diamante inteiro
Do fundo do mar.

E quando este brilho
Que o vento apregoa
Sente o cheiro neutro
Do fundo da rua
Estilhaça inteiro
Parte sem olhar.

Mascara-se em pedra
Sem cor, em cinzento
Com um brilho lento
Que teima em queimar.

E o candeeiro
Que acende o escuro
Reflecte nela até ofuscar.

Essa pedra vento
Corre como água
E debaixo da lua
Da rua da mágoa
Desfaz-se no ar.


1994





terça-feira, julho 13, 2004

Encruzilhada

Gostava de ter várias vidas. Em cada encruzilhada experimentar cada uma das opções. E depois ir espreitar como tinha sido a outra e a outra e a outra. Não deixar ninguém pelo caminho. Não ficar a pensar no que posso ter perdido. E tenho só uma.

Se puder escolher na encruzilhada, escolho não sofrer. Vou deixando para trás tudo o que me dói. E não olho mais.

Queria chegar ao futuro e sentir que as contas estão saldadas. Que devolvi à vida tudo o que ela me deu.

Mas não sei se tenho tempo. Não sei se sou capaz. Por isso vou a correr.

Muitas vezes engano-me no caminho e se olhasse para trás ele já não estaria lá. E deixei muita gente, pensando que ia esquecer e não esqueço. Que não ter ido por lá era suficiente para não chorar.

Mas também já não sei chorar. Das minhas coisas não choro. Choro com as notícias, com os olhos das pessoas que são apanhadas pela guerra, com as crianças transparentes de fome, com idosos a dormir no chão, com os cachorrinhos perdidos nas ruas, com mil coisas eu choro. E olho para as minhas como olho para um filme, vejo a minha dor como se estivesse projectada num ecrã e não fosse nada. E a minha cabeça pensa que devia chorar. Mas não sinto o que é meu como se fosse meu. Olho à distância e corro para a frente.

E o tempo corre também.

segunda-feira, julho 12, 2004

Pablo Neruda - 100 anos

EL VIENTO EN LA ISLA

El viento es un caballo:
óyelo cómo corre
por el mar, por el cielo.

Quiere llevarme: escucha
cómo recorre el mundo
para llevarme lejos.

Escóndeme en tus brazos
por esta noche sola,
mientras la lluvia rompe
contra el mar y la tierra
su boca innumerable.

Escucha como el viento
me llama galopando
para llevarme lejos.

Con tu frente en mi frente,
con tu boca en mi boca,
atados nuestros cuerpos
al amor que nos quema,
deja que el viento pase
sin que pueda llevarme.

Deja que el viento corra
coronado de espuma,
que me llame y me busque
galopando en la sombra,
mientras yo, sumergido
bajo tus grandes ojos,
por esta noche sola
descansaré, amor mío.

domingo, julho 11, 2004

Que mais surpresas me irá trazer este blog?

Há pouco mais de uma semana decidi concretizar uma ideia que já tinha há muito tempo : fazer um blog.

Coisa que - tecnicamente - de início se revelou menos dificil do que eu esperava.

Depois, ao logo dos dias desesperei algumas vezes. Diziam-me que os textos eram grandes demais, o fundo não devia ser negro, devia ter contador...a certa altura achei que o meu blog era uma nódoa.

Depois tentava pôr contador e apagava o arquivo, depois punha um link e apagava os outros, depois tentava pôr não sei o quê e apagava o sidebar, as fotografias apareciam como uns quadradinhos brancos com um X vermelho...uma desgraça!

Coisas de quem gosta de escrever, mas pouco se interessa por estes assuntos mais técnicos.

Mas, neste curto espaço de tempo, tenho-me sentido compensada, apesar destes desaires.

E, sinto isso de tal forma, que me apeteceu partilhar esta satisfação.

Adoro conhecer PESSOAS. Sou muito curiosa do mundo e das coisas. Ando sempre à procura de aprender algo com as pessoas com quem me cruzo. Gosto de saber o que aconteceu no passado.

Na minha formação de Letras, a época que mais mexeu comigo foi a de Pessoa, Almada, Santa Rita Pintor, Sá Carneiro. A geração de Orfeu.

No outro dia aprendi qualquer coisinha num programa de rádio acerca de Almada. Alguém veio cá e comentou o texto onde falo nisso. Se eu imaginava que essa pessoa conheceu Almada, foi a uma das suas conferências! Que sabia tanto acerca da sua procura obcessiva pelo NÚMERO! Que foi amigo do filho de Almada!

Para quem tem este tipo de curiosidade que eu tenho, recomendo vivamente a visita ao blog memoriasdopresente.blogspot.com.

Têm aí uma oportunidade de aprender. De se cruzarem com alguém que tem muito para contar.

Já valeu a pena esta minha viagem ao mundo dos blogs. Só por este momento.



sábado, julho 10, 2004

Auto retrato

Sou feliz e sinto-me pequena
Nesta enormidade de gente.
Sinto-me tão simples, tão ignorante
Destas artes sociais.

Encolho-me em todos os lugares
Onde vou.
E fujo, apavorada, para casa.

Sei ler, escrever
Respirar com o mundo
Adivinho momentos
Em sintonia com a vida
Rio e choro
A olhar para as coisas
E não sei nada.

Não sei fazer sorrisos
Sem motivo
Dizer coisas
sem razão
Não sei cumprimentar
quem não conheço
Nem gostar
De quem não gosto.

Nasci no tempo errado,
Na vida errada
Não pertenço aqui.

E todos os dias
Tenho que sair de casa
E fazer estas coisas
Que não sei.


Abril de 2004

Minho

Água que caía
Na roda da azenha
No caminho estreito
Vinha a sombrear

Concertina ao longe
A ensaiar as voltas
E só ruído de água,
de calor, de pássaros
e o cheiro a terra,
a quente, a paz.

Passado a espreitar
Na pedra do muro
E no peito um murmúrio
A pedir ao tempo
Para voltar atrás.


Março de 1998

sexta-feira, julho 09, 2004

Tirar o equídeo da pluviosidade

No meu habitual regresso a casa, desta vez vim o tempo todo a rir. Com as notícias, ou melhor, com uma notícia.

Então a bancada do PS não se toma de questões com a da maioria a propósito do assunto na ordem do dia ( até já me aflige ouvir a expressão, quanto mais dizê-la ) e eis que a dada altura um deputado do PP diz qualquer coisa assim ao do PS : tire o equídeo da pluviosidade que os senhores não sabem se ganhariam as eleições.

Gostei. Que pérola.

quinta-feira, julho 08, 2004

Eu sei que isto não se faz

Eu sei que é um texto muito grande para pôr num blog. Está bem. Têm razão. Mas é tão bonito...além do mais, vejam lá a coincidência : eu ontem disse que não ia resistir a pôr o texto. Nem sequer me lembrava que de facto hoje faço anos. Pois é: faço anos.

Não fiquem preocupados. Gosto do texto. Tenho saudade de muita coisa ( principalmente das coisas que nunca vou viver ), mas não estou assim triste.


ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos, 15-10-1929

Mas invariavlmente este texto dá-me uma certa vontade chorar. Que bem que ele escrevia!


quarta-feira, julho 07, 2004

Viagem de regresso a casa

Ao contrário da generalidade das pessoas, gosto muito das viagens de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Quarenta minutos. Sem a infelicidade das buzinas e dos canos de escape: a maior parte do tempo em paisagem campestre.

A viagem é um dos poucos momentos do dia em que estou só. Mecanicamente ocupada com a condução e com a mente livre para divagar.

Hoje fui para lá a pensar num grupo organizado para votar em branco. Que ideia interessante! Com campanha e tudo.

Mas a magia surgiu no regresso a casa. Apanhei a entrevista das 19h na TSF. Germana Tânger. Amiga de Almada Negreiros. Ela própria um ser imenso. Almada escolheu-a para declamar os seus poemas e foi ele que organizaou, em 1959, uma homenagem a Pessoa onde ela declamou a Ode Marítima.

Pois bem, um daqueles momentos!

Um privilégio ouvir alguém falar de Almada Negreiros tendo convivido de tão perto com ele. Fiquei a saber que costumava "hibernar" em Novembro: metia-se na cama e só saía no fim do Inverno. Nesse meio tempo, dedicava-se à Geometria ( para desespero de Sara, a sua mulher ), à procura DO número - esta seria a sua grande obcessão.

A seguir Germana fala da sua paixão pela poesia de Pessoa e, quando o entrevistador lhe pede para dizer um poema, ela escolhe Aniversário de Álvaro de Campos...

Não posso descrever. Não tenho capacidade para o fazer. Sei que a dada altura, não complicasse isso demais a minha condução, toda a SAUDADE desse poema me deu uma vontade enorme de chorar. Ela chorou ao declamá-lo.

É nestes momentos que sinto que o mundo tem um coração e que ele bate ao ritmo do meu por uns instantes.

Se calhar não vou resistir a pôr aquele poema enorme, com um
tamanho tão desajustado a um blog, aqui no sítio da saudade.



terça-feira, julho 06, 2004

Há 10 anos atrás

Este poema é de uma altura, por volta de 1995, em que eu tive um desânimo imenso de viver ( vulgarmente designado por depressão ).

Dizem que nestas se alturas se escrevem as coisas mais bonitas. Concordo, mas acrescento que se escrevem coisas muito sofridas e, ainda hoje, me lembro exactamente do que sentia quando escrevi este poema.

De certa forma, a "dúvida indefinível" permanece até hoje.

PERTURBAÇÃO

Na confusão de ser eu
Ou não ser nem ficar
na dúvida indefinível
de querer o infinito
ou deixar correr o rio
da rua onde nasci.

Não sei a que horas
Tocou o despertador
Mas agora é tarde
E a chuva e o vento
Destruíram tudo o que era meu.

Talvez amanhã não seja assim
Talvez a dúvida e o vento
Se vão embora pelo corredor
E então eu, feliz, fecharei a janela.

domingo, julho 04, 2004

Quando eu imitava Fernando Pessoa

INTERSECÇÃO


As pessoas viviam
Do lado de cá da janela.
Aqui deste lado o tempo parou.
As aranhas, pacientes, tricotam as teias
O pó, suavemente, pousou sobre tudo
As pessoas, alheadas, ficaram na janela


Havia um relógio que marcava o tempo
Naquele silêncio
Também houve em tempos
Uma criança a rir.

Agora é nada, só névoa
As teias enredam os pensamentos, lentos
Lá fora a luz é viva, o sol é quente
Jactos de luz atravessam a vidraça
E acendem infinitas partículas de pó

No chão o arco-íris
No ar o vazio do tempo
E lá fora barulho, buzinas, vida
Como se aqui o relógio nunca tivesse parado

Ah! Como sinto a falta da minha infância
Do tempo feliz em que atravessava a janela.

sexta-feira, julho 02, 2004

Sophia

Hoje tinha pensado nela. Achei que também deveria ter colocado um link para os seus textos.

O mar. Como ela sabia dizer o mar.

Liberdade

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade


Sophia de Mello Breyner Andersen



E afinal, foi embora hoje...



E deixou ficar tudo para nós.

Como é possivel não gostar de poesia?


Um blog é uma preocupação

Acho que esta coisa de ter um blog não condiz nada com a minha vida. Ou melhor tem tudo a ver, mas só vem complicá-la.

Não é que agora dou por mim a pensar nisto? A pensar que preciso de tempo para lhe dedicar. Coisa que não tenho em abundância. A tal corrida apressada da vida. A necessidade de viver tudo e ver o tempo a fugir.

Pois é, agora tenho um blog. Em vez de escrever textos para o meu vasto arquivo, vou escrever aqui o que entender que pode algum interesse para quem me visite.

Hoje andei preocupada com o teor dos últimos textos. É muito futebol na curta vida do meu blog.

Fiquei preocupada a pensar que depois não faz sentido pegar em algum dos meus poemas e colocá-lo aqui.

Combina mal : futebol e poesia. É como preto e castanho. Não casam.

Mas, se pensar bem, combina comigo. Gosto de tudo o que me faz sentir que estou viva.

Gosto de escrever pelo lado lúdico de brincar com palavras e colocá-las no texto, como se fizesse um puzzle. Preciso de escrever para pôr em pensamentos coisas que sinto, muitas vezes em demasia.

Gostei deste ambiente de futebol por todo o tipo de emoção que lhe esteve associada. O patriotismo a uma escala desconhecida. A postura, a atitude dos outros povos. O convívio. A festa.

E escrevi dois posts sobre futebol.

Mas nada me impede de amanhã colocar um poema.

Claro que tenho que pedir desculpa a um amigo, o Clark Kent, que torceu o nariz quando lhe disse que ia pôr aqui uns poemas. Se calhar esse nunca mais me vem visitar. Mas eu aceito que ele não goste de poesia, ele tem que compreender que eu gosto.