quarta-feira, junho 30, 2004

Porque é que eu escrevo?

Porque é que eu escrevo? Nunca tinha feito essa pergunta a mim própria, mas de há uns tempos para cá algumas pessoas disseram que eu sou poetisa. E eu acho que não sou. Em primeiro lugar porque não gosto desta palavra, o som " isa " faz-me lembrar coisas que não gosto, nomes feios como Marisa e coisas pequenas (reminiscências do latim ? ). Gosto mais da palavra POETA. Mas não sou poeta. Sou quando muito aprendiz de poeta. Não gosto de ter pretensões, muito menos deste género. Fernando Pessoa até saltaria se soubesse que alguém diz que eu sou poeta ( se calhar até me desculparia quando soubesse que eu gosto tanto dele ).

Mas voltando à pergunta. Eu acho que escrevo porque sinto demais. Tudo o que eu sinto é grande: os ódios, as raivas, as paixões, as alegrias, as tristezas, tudo é desmesurado. Tão desmesurado que não cabe cá dentro, não cabe em lugar nenhum. Parece-me então que escrever será um género de terapia que eu uso para libertar as emoções. Se não escrevesse provavelmente seria uma pessoa frustrada, até já teria enlouquecido, teria estoirado por dentro por sentir tudo tão intensamente. Então escrevo e despejo no papel as coisas que por cá vão, tento entender-me assim ao escrever.

Depois, há uma segunda vertente na minha escrita. Sempre reparei nas palavras. Isto é tão antigo que uma das recordações mais velhas que tenho é precisamente sobre uma palavra, mais precisamente ainda sobre uma palavra que eu odiava (e ainda hoje me parece feia ). Essa história é engraçada e digna de ser contada:

A minha irmã Maria Helena tinha um namorado. Eu tinha 3 ou 4 anos. Eu era o pau-de-cabeleira: ela só podia sair com ele se levasse o bebé. Esse namorado a mim parecia-me um príncipe. Era alto, loiro e imaginem lá : ele ia buscá-la numa charrete puxada a cavalos! Isto são coisas de Ponte de Lima, onde sempre existiram palácios e pessoas com estes requintes (agora já não é bem assim, há muita gente que adoptou a minha terra, por motivos nem sempre grandiosos, mas sim pretensiosos ). Pois bem, em plena fase de complexo de Édipo, o namorado da minha irmã, aos meus olhos, era mesmo um príncipe encantado.

Faço um parêntesis para dizer que hoje me cruzo com esse homem, continua a ser loiro, mas já não é tão alto. De príncipe não tem nada, mas com 3 anos os meus olhos viam tudo enorme e lindo.

Pois bem, a história desse príncipe acabou da pior maneira. Um dia, ele não trouxe charrete e fomos de Vespa para o rio. Eu devia ser tão pequenina que o meu lugar na lambreta era à frente, em pé. Essas motos antigas tinham um travão que era um botão na plataforma da frente. E foi essa a tragédia. O príncipe a dada altura precisou de travar e disse-me algo terrível. Ele disse-me: " tira daí o pé ". Nunca mais gostei dele, nunca lhe pude perdoar essa falha. As pessoas de quem eu gostava não podiam dizer palavras feias, nunca me diriam " pé ".

Acho isto curioso para um bebé, mas é verdade, lembro-me como se fosse hoje, tal foi o trauma, a força que esta situação teve nas minhas recordações.

Portanto, sempre tive uma relação curiosa com as palavras e, quando comecei a escrever, gostava de brincar com elas.

Prática como sou, quando um dia a professora da escola primária ( D. Roquinha ) me pediu uma redacção sobre o sol, eu achei um disparate. Que se poderia dizer sobre o sol? " Eu gosto muito do sol, ele brilha de dia e esconde-se à noite, é lindo e importante ". Parecia-me pouco e até um bocado parvo fazer uma redacção sobre este tema. Então tive uma ideia. O ideal era fazer quadras. Na altura gostava muito de uns poemas de António Feijó que lia num monumento que ainda existe no centro da vila:

Das terras que tenho visto
Por toda a parte por onde andei
Nunca achei nada mais imprevisto
Terra mais linda nunca encontrei.

Isto parecia-me excelente, soava bem e até era fácil. Então fiz um Hino ao Sol (não sei onde pára esse poema, perdi o papel, mas está publicado no Cardel Saraiva - jornal regional - e teve depois direito a uma música ). Era assim:

Ó sol que pareces d'oiro
Ó sol, ó jardim sem fim
Tu pareces uma flor
A mais bela para mim.

De tudo o que tenho visto
Nunca vi nada igual
É o rei de toda a terra
És o rei de Portugal.

E assim por aí fora, já não me lembro do resto. Claro que a professora ficou para morrer. Eu só tinha sete anos!! O poema correu a escola toda, foi lido a todos os coleguinhas e acabou por ser publicado no jornal. Não acreditaram que tinha sido eu a fazê-lo, mas fui.

E foi assim o meu primeiro poema.

A partir daí descobri que era mais fácil fazer textos a brincar, com rimas e ritmo, do que escrever aquelas redacções protocolares da escola primária. E nunca mais parei até aos vinte anos.

Tive muitas fases. Florbela Espanca, Mericia de Lemos, Pablo Neruda...até que aos 18 anos conheci Fernando Pessoa. Tive o privilégio de ter sido guiada nos seus textos por uma mulher que os conhecia e interpretava como ninguém.

Mais um parêntesis para falar dessa professora. Tinha um nome lindo, de flor e árvore: Margarida Laranjeira. Nunca me vou esquecer dela. Quando uns tempos depois foi o centenário da morte do poeta, vi muitos entendidos na televisão a falarem sobre a sua obra, mas poucos a dominavam como ela - isto veio reforçar a minha ideia de que as pessoas verdadeiramente importantes não aparecem nas televisões.

Mergulhei então em Fernando Pessoa, Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos. Comecei a compreender que escrever não é só inspiração e que ele trabalhava os seus poemas ao ínfimo. Nada num texto estava ao acaso: o cuidado com a escolha da palavra, pelo seu som, pelo seu significado, pela sua integração no contexto, tudo era pensado. O milagre era que no final os textos faziam mais sentido do que qualquer outra coisa que eu já li. Deslumbrei-me com esta perfeição, com este rigor que se traduziam numa beleza que ainda hoje me parece pouco humana - coisa de deuses.

Nessa fase comecei a escrever melhor, a imitar, na minha pequenez, o que ele fazia. Álvaro de Campos era o favorito. Mas foi aí que comecei a sentir-me muito pequena e tudo o que eu tinha sonhado até ali me pareceu uma pretensão ridícula.

Estava em vésperas de entrar para a Universidade e o curso que tinha escolhido era precisamente Português. Tinha necessidade de conhecer a fundo a minha língua para poder sonhar em vir a trabalhá-la um dia.

Ironicamente a Universidade teve em mim um efeito contrário. A partir de dada altura deixei de escrever e só retomei a escrita muitos anos depois.

O ambiente que encontrei não era o que esperava. A Faculdade de Letras não estava cheia de escritores, de poetas, mas sim de professoras que só se preocupavam com as médias para ter o melhor lugar nos concursos.

Fiquei desolada com aquilo tudo e o meu único consolo foram alguns professores que tive a honra de conhecer. A maior foi ter sido aluna do Prof. Oscar Lopes no último ano em que ele leccionou. Foi com ele que pus em pensamentos o que já tinha percebido por intuição: nós pensamos por palavras e, quanto maior for o nosso vocabulário, mais precisos serão os nossos pensamentos, mais rigorosos, mais vastos.

Outro parêntesis: quando o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa se dedicou a contar o vocabulário dos concorrentes do Big Brother e constatou que eram só 100 palavras, fiquei aflita! Que visão poderiam ter do mundo pessoas que só iam até ás 100 palavras ? Que horizontes reduzidos! Isto é muito preocupante, pois parece-me que a maior parte das pessoas é assim.

Prosseguindo com a Universidade : conheci também o fabuloso Arnaldo Saraiva que me guiou pela Literatura Brasileira. As aulas dele eram um momento de prazer, como deveriam ser todas as aulas de todas as coisas. Aprendi a sério.

Para além disso tive o privilégio de conhecer um casal de existencialistas ( ele judeu francês, ela portuguesa ) que me tiraram as teias de aranha de preconceitos do cérebro e me fizeram uma pessoa muito mais aberta e desligada do politicamente correcto. Serge Abromovici e Regina Guimarães. Ela parecia mesmo a Simone de Beauvoir.

Todavia, o ambiente geral da Universidade não era propício a um candidato a escritor, escrevia-se muito mal, os professores queixavam-se e ganhei complexos de escrever. Assumi os sermões que não seriam para mim, mas que me tocavam e me faziam pensar que realmente tinha tido pretensões absurdas acerca de vir a ser escritora.

Tudo isto acabou por passar e, anos depois, já profundamente envolvida com as questões de gestão comercial, design industrial, etc. sinto necessidade de me recordar de quem era. No meu mundo profissional não havia lugar para a poesia e essa parte de mim estava lá.

Então, como já ninguém policiava o que eu escrevia, ganhei coragem e recomecei. Pensei cá para mim : sim, as regras são importantes, é importante conhecê-las para as poder transgredir, mas a inspiração também tem mérito e se a temos não a podemos ignorar. Podemos até fazer as nossas regras...

E agora escrevo outra vez. Gosto de brincar com as palavras no ecrã do computador, fazer puzzles, mudar as peças, voltar a mudá-las e ver o que dá. É um jogo, um vício, uma forma de terapia como já disse.

Mesmo quando falo, gosto de procurar a palavra certa, exacta para o que quero dizer. Ás vezes utilizo uma palavra pouco usual para definir melhor um determinado contexto e, para meu divertimento, há alguém que me corrige e me diz que não se diz assim. Gosto realmente de brincar com as palavras. Para mim uma criada não é uma empregada, se digo uma coisa não quero dizer outra. As pessoas por vezes não me entendem e julgam que o faço por ignorância, o que me diverte mais ainda.

Agora escrevo outra vez. Poemas. Gostava de escrever romances, mas acho que não sei. Nunca tentei.